Lendo A Morte do Pai, tocante e surpreendente autobiografia do escritor Karl Ove Knausgard, esbarrei em uma frase antológica em que o norueguês diz que "escrever é retirar da sombra a essência do que sabemos". Tentei encontrar alguma definição igualmente epifânica sobre a arte teatral, ofício que me mobiliza há quase quatro décadas. Sem a maestria do mestre original, rabisquei parágrafos "saramagoianos" longuíssimos, rebuscados e barrocos, sem objetividade ou clareza. Do nada, lembrei de Ferreira Gullar e sua afirmação de que "por ser a vida insuficiente, o homem inventou a arte". Como não consegui inventar minha frase original e definitiva, joguei a toalha.
O teatro, milhares de teorias e dezenas de espetáculos depois, ainda é um mistério que me escapa e talvez por isso exerça tal fascínio sobre mim. Pergunta permanentemente sem resposta, o teatro é o grande desafio da minha vida e constato que ainda o respiro 24 horas por dia, com o mesmo entusiasmo do início, de quando preenchi mal o formulário do vestibular e passei no curso errado, constatação apropriada ao ano em que o Porto Alegre Em Cena comemora sua 20ª edição. Lembro sempre de uma conversa com Cláudia Laitano, quando ela disse uma coisa que nunca esqueci, que "o festival tinha crescido mais que a cidade".
A frase da Cláudia, delicada como ela, me surpreendeu porque, com as devidas exceções e as ressalvas de sempre, gaúcho não perdoa o sucesso dos gaúchos que dão certo. O cara que se sobressai, qualquer que seja sua área de atuação, deve estar preparado para pedradas de tamanhos e intensidades diferentes. Elis Regina está aí e não me deixa mentir. O Rio Grande parece viver das glórias do seu passado de glórias e da mediocridade assustadora de seu presente endividado. Minha tese é de que há aqui, vívido, um indisfarçável ressentimento que prefere o Estado estagnado a reconhecer méritos nos adversários.
Muitos se apresentam como liberais de esquerda, mesmo quando conservadores e reacionários. E nada me parece mais reacionário do que um discurso conservador disfarçado. Dia desses, durante um compromisso público, atendi o chamado de um parente necessitado de internação hospitalar e prontamente acompanhei-o ao hospital. Entre o dever legal e o chamamento do sangue escolhi, como Antígona, o laço sagrado do parentesco. Xerifes ideológicos da conduta alheia, sem noção, registraram minha saída com fúria xiita. Com o festival é a mesma coisa. Sempre tem alguém pra apontar falhas, insinuar improbidades, puxar pra baixo. Mas a história do Em Cena fala por si, exemplar. Haja arruda, sal grosso e paciência com esse velho Rio Grande marrento de sempre!