A memória se esfacela um pouco a cada dia - e nem sempre é o caso de lamentar que isso aconteça. O próprio do humano é tanto lembrar quanto esquecer. O velho Borges nos ensinou que pensar compreende necessariamente esquecer. Isso, porém, não nos isenta de perguntar por que esquecemos daquilo que esquecemos? Por que fabricamos novas e renovadas lembranças para personagens, eventos e paisagens que desejamos glorificar, enquanto outras sucumbem, talvez para sempre?
Essa divagação me ocorre no momento mesmo em que vi a memória se esfacelando. Foi em uma visita recente a Barra do Quaraí, no extremo oeste do Rio Grande, perto da chamada Tríplice Fronteira, o ponto onde, de um só golpe, o olhar abarca o Brasil, o Uruguai e a Argentina.
Barra do Quaraí, a 717 quilômetros de Porto Alegre, resume-se a três ruas e suas transversais, casas baixas, um ou dois andares, um único hotel. São evidentes os sinais da aposta - malsucedida - na variação cambial, na década de 1980 e na primeira metade dos 90. A cidade, àquele momento, ergueu o hotel, hoje vazio, não fosse um ou outro pescador, e chegou a contar com 13 supermercados, agora transformados, todos eles, em prédios fantasmas.
O mais impressionante, porém, são as ruínas do velho saladero, a charqueada administrada por ingleses que abatia o gado dos três países, com mão de obra também dos três países. Funcionou desde meados de 1870 até os anos 1940, quando o advento dos frigoríficos pôs fim ao ciclo do charque. Da casa em que eram feitos os pagamentos de centenas de funcionários, restou pouco mais do que uma tapera, sem telhado ou cobertura, mas ainda com paredes e portas, que a vizinhança usa de arrimo para a corda de dependurar a roupa lavada.
Pouco adiante, no meio da mata, sobram a fachada, a cobertura e as paredes internas do que foi a mansão do gerente do saladero. Trata-se de um palacete de inspiração eclética (entre o colonial e o neoclássico), do qual apenas se adivinha o passado suntuoso e ostentatório. As paredes estão pichadas, a vegetação se infiltra pela alvenaria. Os próprios moradores de Barra do Quaraí arrancaram o piso na esperança de encontrar um suposto tesouro que os ingleses teriam enterrado.
Parece que ninguém estuda ou faz pesquisa sobre a velha charqueada. Não há esboço de restauração do prédio. Os proprietários do terreno não vivem na cidade. A área nem sequer está cercada. A ONG Atelier Saladero (www.trinacional.com ) deposita esperanças nas novas gerações. Trabalha com as duas escolas da cidade (uma municipal e outra estadual) para lembrar que aquelas ruínas são indícios de uma improvável riqueza que um dia sustentou a própria cidade.