Old Orchard Beach, Maine, Estados Unidos - A primeira vez que a Food and Drug Administration (órgão do governo americano responsável pelo controle de alimentos e remédios) enviou um inspetor para checar a produção de laticínios na Kate's Homemade Butter, as coisas não deram muito certo.
"O cara nem desceu do carro", conta Daniel Patry, o bem-humorado fundador da empresa. "Ele se recusou a acreditar que era uma fábrica de verdade."
Patry, que havia trabalhado por décadas em fábricas de laticínios comerciais, começou a produzir manteiga aqui em 1981, em sua garagem num bairro residencial. Ele não tinha vacas e tinha muito pouco capital, mas tinha um objetivo elevado: reproduzir a manteiga fresca, feita de nata de alta qualidade, a qual se lembra de comer enquanto crescia numa fazenda leiteira perto de Minot, no estado do Maine.
Hoje, a Kate's produz mais de 450 toneladas de manteiga por ano, todas na mesma pequena garagem. E, no ano passado, tornou-se a primeira engarrafadora em larga escala de um laticínio que quase desapareceu das mesas americanas: buttermilk (chamado em português de leitelho), o líquido cremoso que fica na batedeira depois que a manteiga se aglomera.
"As pessoas não têm ideia de quanto esse negócio é bom, mas logo, logo vão descobrir", diz Patry, 62 anos, que é talvez o nativo mais otimista e falante da história do Maine.
Muitos cozinheiros mantêm em suas casas o leitelho à mão para fazer panquecas, molho caseiro ou pão de milho. Eles podem saber que ele proporciona bolos mais macios (porque amacia o glúten na farinha), biscoitos mais fofos (pois seus ácidos aumentam o poder de fermentos químicos) e molhos mais grossos (o ácido lático no leitelho gentilmente coalha as proteínas numa massa molinha).
Mas o que poucos cozinheiros sabem é que o leitelho comercial à venda nos Estados Unidos, na verdade, não é leitelho. Ele é feito de leite magro ou desnatado, que normalmente, por sua vez, é resíduo da produção de queijo e de manteiga. Esse leite é inoculado com culturas para acidificá-lo, e engrossado com aditivos como goma de alfarroba e goma carragena. O resultado é um fac-símile achatado do leitelho real, como na relação entre uma canção e o toque de celular que fazem dela.
"Não tem nada de errado com isso, mas eu não ia querer tomar", diz Diane St. Clair, produtora de laticínios em Vermont que, como muito de seus pares, prefere o sabor ácido, leve e, ainda assim, rico do leitelho genuíno.
Foi exatamente esse leitelho que saiu do fundo da batedeira de Patry às quinze para as sete da manhã, recentemente. O leitelho de verdade é aquilo que sobra da nata pesada depois que ela foi batida (aqui, cerca de quatrocentos e cinquenta quilos de uma vez só, descendo ao longo de uma batedeira de manteiga de quatro metros de altura, com grandes batidas e pancadas) para quebrar a sua emulsificação natural.
Nesse processo, os glóbulos de gordura são quebrados para soltar a gordura amarela da manteiga, que vai se aglomerando. O líquido que resta é o leitelho: leite naturalmente desnatado, com traços microscópicos de manteiga que deixam um sabor rico e pungente e um toque cremoso na boca. O leitelho real contém diacetil natural, o mesmo composto que torna a manteiga derretida tão aromática e infunde alguns vinhos chardonnay de toques amanteigados.
"O meu leitelho tem pedaços de manteiga boiando, o que provavelmente não deveria acontecer", diz St. Clair, que tem um rebanho de oito vacas Jersey em sua fazenda (curiosamente chamada Animal Farm - título original do livro "A Revolução dos Bichos" -, localizada na cidadezinha de Orwell, homônima do autor, em Vermont), e faz manteiga e leitelho para os restaurantes do chef Thomas Keller. "Mas com certeza ele fica gostoso desse jeito."
Ela, Patry e alguns outros produtores dedicados de laticínios aqui e no Sul acabam de começar a levar o leitelho à moda antiga para sacolões e hortifrútis, à medida que os equipamentos de engarrafamento começam a ficar menos caros.
Seus esforços se ligam facilmente a várias tendências culinárias: o trabalho com produtos agropecuários tradicionais e a incorporação de resíduos antes rejeitados e partes diferentes de ingredientes nobres. O leitelho consegue até representar tanto o sul dos Estados Unidos quanto a Escandinávia, duas das maiores influências gastronômicas de hoje.
Em toda parte, chefs ambiciosos de repente estão mergulhando no leitelho. Só em Nova York, Roberto Mirarchi está banhando batatas doces com leitelho azedinho no Blanca; Wylie Dufresne, do WD-50, recobre pães doces com leitelho aromatizado com capuchinhas; e a jovem estrela Matthew Lightner o coa até engrossar, e usa para preencher cascas de girassol batateiro fritas crocantes no Atera.
No restaurante Earth, em Kennebunkport, no Maine, o chef Ken Oringer acrescenta uma gota de leitelho azedinho e gelado a cada ostra na concha, contribuindo para a acidez normal do limão com a riqueza do leite. E em todo o sul dos Estados Unidos, chefs de alta patente como Linton Hopkins do Eugene, em Atlanta, e Josh Feathers do Blackberry Farm, perto de Knoxville, no Tennessee, estão percebendo novas formas de usar o leitelho, um ingrediente distintivo da tradição culinária sulista.
"Minha família toda se lava nele", conta Colleen Cruze, 25 anos, a herdeira de pele cremosa da Cruze Dairy Farm, perto de Knoxville. Seu pai, Earl, 69 anos, vem espalhando o evangelho do leitelho de verdade pelo Sul há décadas. A fazenda, hoje, produz cerca de quinze mil litros por semana.
Cruze se formou na Universidade do Tennessee em ciência agronômica e serve de embaixadora do leitelho na família, vendendo biscoitos dourados de leitelho, sorvetes de leitelho com sabores como cardamomo e lima ou caramelo salgado, e leitelhos com sabor de figo e morango na feira de fazendeiros Market Square em Knoxville, todos os sábados.
Na feira, ela é incansável em persuadir fregueses a tomar doses de leitelho puro, uma tradição rural difícil de vender àqueles acostumados apenas com a versão azeda e com gosto de papelão do supermercado.
"As pessoas têm muito medo", diz ela. "Tenho de lembrá-las que é como iogurte."
É uma virada curiosa, pois o leitelho era um produto fundamental na dieta americana bem antes de o iogurte se tornar popular, nos anos 1970.
Debbie Moose, historiadora da comida da Carolina do Norte, lembra-se de quando o leitelho era tão predominante no Sul que sua mãe chamava a versão normal de "leite doce", para diferenciar as duas.
"É o ácido lático que dá ao leitelho o azedinho, e os sulistas realmente apreciam isso", diz Moose, autora de "Buttermilk: A Savor the South Cookbook" ("Leitelho: sabor nas receitas sulistas"), publicado em setembro pela editora da Universidade da Carolina do Norte. Leitelho misturado com migalhas de pão de milho era uma ceia clássica no Sul rural, e a combinação é algo bem próximo à perfeição: doce, azedinha, terrosa, rica e fresca.
Muitos fatores além do ácido lático (incluindo a temperatura, o frescor e o conteúdo de gorduras) se combinam para produzir o vivo sabor do verdadeiro leitelho. Fazendeiros modernos como Cruze acrescentam culturas específicas ao leitelho recém-extraído, em vez de se arriscar com as espontâneas.
Como todas as comidas culturadas, o leitelho pode azedar em vez de fermentar, caso as condições não sejam as ideais. Só recentemente, diz Cruze, seu pai lhe permitiu, às vezes, executar a importante etapa de despejar as culturas no tanque. Quando ele o faz, diz logo antes uma oração.
"Ele costumava trancar o celeiro quando tinha muitas mulheres trabalhando na fazenda", conta ela. "Dizia que, se elas estivessem menstruadas, a cultura não ia pegar." (Essa superstição já foi invocada para a produção de maionese na França, e de pão no Leste Europeu).
Na Kate's Homemade Butter, hoje, só trabalham homens. (Kate, uma prima ruiva cuja foto ainda bebê é parte do logo da empresa, engatinhava quando os Patry começaram a fazer manteiga; hoje ela tem 34 anos). O filho mais novo de Patry, Lucas, 30 anos, faz a cultura: ele também faz pesquisas, buscando em manuais de produção de laticínios de antes da Segunda Guerra Mundial fórmulas que já desapareceram.
Lucas compartilha silenciosamente o entusiasmo e a paciência do pai nessa arte. E, toda quarta-feira à noite, enquanto o leitelho da semana repousa num tanque de aço inoxidável, os dois trabalham a noite inteira, desmontando as máquinas de fabricação de manteiga, levando grandes carrinhos e o maquinário complexo para o quintal, e então reconstruindo toda a linha de montagem para o engarrafamento. (Pelo jeito, os Patry têm vizinhos bastante pacientes).
E Patry e seu pai compartilham a missão de trazer o leitelho, talvez na forma de um smoothie, de volta às massas.
"Vamos começar a escrever 'probiótico' na nossa embalagem", diz ele, referindo-se às culturas de bactérias que já se demonstrou ajudarem a promover a saúde intestinal. "Se funcionou para o iogurte, deve funcionar para nós."