
No capítulo de introdução, o jornalista Julio Maria atesta: a biografia de Elis Regina não tem fim. Lançado primeiramente em 2015, o livro Elis: Nada Será Como Antes ganhou nesta semana uma nova versão pela Companhia das Letras, marcando os 80 anos de nascimento da artista.
A biografia foi revista, atualizada e acrescida de anotações de cadernetas da cantora, que continham planos para a carreira e ideias para seu disco que seria lançado em 1982. Porém, nada foi posto em prática: Elis morreu em 19 de janeiro daquele ano, aos 36.
Em entrevista a Zero Hora, Julio comentou sobre os anseios, planos e nuances da biografada.
O que o motivou a retrabalhar e a lançar uma nova edição de Elis: Nada Será Como Antes?
A biografia foi lançada há 10 anos, mas estava fora de circulação, pois a editora responsável, Master Books, fechou. Quando saquei que Elis faria 80 anos em 2025, comecei a me mexer, há dois anos. A Companhia das Letras se interessou, negociou com a editora fechada, e eu comecei o trabalho de pesquisa.
Relendo o texto, você começa a querer melhorar as coisas. Algumas histórias começaram a aparecer. Teve também aquele comercial que a Elis surgiu em IA, e ali tive certeza: essa mulher segue muito forte. Veio essa sensação de que Elis está viva.

Tanto que o título da introdução aponta: "Uma biografia sem fim".
A biografada impede você de fazer uma biografia definitiva. Ela sempre vai trazer fatos biográficos. Tem gente viva que já parou de produzir fatos biográficos, e tem gente morta que segue produzindo. Tudo isso torna a biografia sem fim porque Elis é sem fim.
Você conta no início que, para esta edição da biografia, decidiu valorizar mais as aspas da Elis. Percebeu o quanto a voz falada tem do magnetismo exercido por seu canto. Nos últimos anos, muitos cortes de entrevistas dela ganharam projeção no TikTok. O que você percebe ao ver, ouvir ou ler uma conversa dela?
Na minha trajetória, aprendi que as pessoas são o que elas falam. A pessoa canta o que fala. Você começa a descobrir o fenômeno da Elis cantora por meio de sua palavra falada. O pensamento dela é tão rápido enquanto entrevistada, as tiradas dela são tão sagazes o tempo todo, que quando ela canta é assim também. A intensidade e a dramaticidade que Elis põe na voz cantada é a mesma quando fala.
Elis foi muito sozinha, sem integrar um grupo. Tinha que lutar. A armadura foi feita para sobrevivência
O livro relata atitudes controversas de Elis, como suas condutas com outras cantoras na época do programa O Fino da Bossa. Você destaca que Elis agia "como uma rainha que não admitia princesas" e que ela "passou a se incomodar com a escalação de outras cantoras em seu programa". Ao longo da biografia, vemos as picuinhas com Nara Leão e Maysa, por exemplo. Teve aquele episódio em que ela levou a cantora Claudia ao palco do programa para fazer perguntas agressivas e o público vaiar. Em sua avaliação, o que levava Elis a tais atitudes?
Eu tenho essa leitura da insegurança. Sempre achando que tem que se segurar, se manter no topo. Uma insegurança de não segurar a condição de "rainha". Ela tinha essa sensação de que, a qualquer momento, a fila ia andar, alguém ia chegar.
Você descreve que a mania de Elis "se jogar em penhascos" para realizar cada interpretação também valia para seus relacionamentos. E isso se estendia para as amizades e companheiros de música. Elis era uma humana, com seus altos e baixos. Há casos em que parecia um tanto impulsiva ou tempestiva, mas havia também momentos de amor e ternura. Pela sua apuração e por suas conversas, a convivência com ela era um pisar em ovos?
Algumas pessoas citam Elis como se ela tivesse características de bipolaridade. Solano Ribeiro (produtor de grandes festivais de MPB), que teve um caso com ela, sentia traços de imprevisibilidade de humor, que mudava muito rápido.
Se a gente fizer uma leitura psicológica da Elis, se for possível, deve-se considerar que ela foi retirada da infância com 13 anos. No momento em que essa menina canta no Clube do Guri (programa da rádio Farroupilha que a lançou) e as pessoas descobrem, já vira alvo de disputa. Homens começam a rondá-la. Elis passa a valer muito, como se fosse um pote de ouro recém descoberto.
O mesmo acontece quando ela se muda para o Rio de Janeiro. Passou a ser disputada por compositores, produtores, empresários, sempre homens com muitos interesses.
Nunca ouvi um sotaque marcante em Elis. Ela aprendia idiomas rapidamente. Pronunciava francês, inglês e espanhol muito bem. Tinha facilidade de pegar a sonoridade verbal
Tenho pra mim que o fato de ter sido retirada de sua infância a abalou, sem contar que a família não tinha preparo emocional para lidar com o que aconteceria com Elis. Ninguém percebeu isso.
Então, ela veste uma armadura para lidar com esse mundo. Por trás da Pimentinha (apelido de Elis), tinha alguém se protegendo de um mundo feroz, masculino, que queria engoli-la. Essa mulher vai sentindo o perigo disso tudo e vai se armando.
Elis foi muito sozinha, sem integrar um grupo. Tinha que lutar. A armadura foi feita para sobrevivência.

Talvez essa armadura tenha pesado com o tempo. Pelo que a biografia relata, Elis parecia viver em um estado constante de ansiedade em seu último ano de vida.
Ali ela tinha perdido muita coisa. Havia terminado com o amor da vida dela, Cesar Camargo Mariano (músico e arranjador), e estava sentindo como é que ia fazer o show sem esse cara.
Emocionalmente falando, estava com os filhos, tentando gostar um pouco mais do Samuel (MacDowell, advogado que foi o último namorado da cantora), que não me pareceu uma paixão arrebatadora.
Elis também sentia uma insegurança com o próprio corpo.
Havia incertezas: "Até onde vou?" "Para onde vai minha carreira?" Tudo isso batia, e essa armadura já não valia mais.
Não me parece que ela tenha negado o Rio Grande do Sul. É como se tivesse adotado um sotaque muito particular para ela, como se não soubesse de onde é
Fazendo um exercício de projeção emocional, posso entender que Elis estava realmente passando por um momento delicado de solidão e experimentando na cocaína um efeito de supermulher.
Naquele momento, em cima do palco, ela não queria deixar ninguém perceber que ela poderia cair de qualidade. Passou a usar para subir ao palco, mas fazia besteira, interpretava uma "antiletra": o que a letra dizia, a cantora fazia o contrário. Essa proteção de não querer mostrar fragilidade trouxe uma Elis estranha.
Falando agora de raízes, Elis parecia ter uma relação de amor e ódio com o Rio Grande do Sul. Cultivava um tipo de carinho com sua cidade natal, mas tampouco se conectava. Por aqui, a galera acusava a cantora de, veja bem, perder o sotaque.
Elis era reativa às perguntas que sempre chegavam como cobranças. "Vocês queriam o quê? Que eu cantasse Prenda Minha?". Ela não tinha ligação com a raiz cultural histórica gaúcha. Isso a fez sair do universo gaúcho muito cedo e buscar suas referências nos discos de jazz.
Logo, essas referências trouxeram um sotaque de fora. Essa musicalidade se transferiu para a fala. É engraçado, nunca ouvi um sotaque marcante em Elis. Ela aprendia idiomas rapidamente. Pronunciava francês, inglês e espanhol muito bem. Tinha facilidade de pegar a sonoridade verbal.
Não me parece que ela tenha negado o Rio Grande do Sul. É como se tivesse adotado um sotaque muito particular para ela, como se não soubesse de onde é. Ela não queria o peso da tradição, ela rompe com as tradições e se torna uma cantora planetária. Elis não foi traidora de nada, pois não jurou alguma fidelidade.
Elis visava ser uma cidadã do mundo, como a própria declarou em entrevista. E, de fato, foi aclamada na França e em outros países. Porém, não investiu tanto assim nisso. Elis não queria consolidar uma carreira internacional?
Ela teve essa chance ao gravar com o saxofonista Wayne Shorter, que ia apresentar Elis para o mundo. Houve uma briga do americano com Cesar Camargo no estúdio. Para mim, esse conflito foi usado como pretexto para que ela não fosse gravar esse disco. Ali estava rompendo uma linha imaginária: a Elis sob comando e direção artística do Cesar, desde 1972.
Quando veio essa possibilidade de internacionalização, havia um potencial de cantora de jazz. É uma jazzista brasileira. O disco que a mostraria para o mundo não existiu, pois esse álbum foi bombardeado pelo Cesar. Na minha leitura, ele se viu ameaçado: "Como vai ser se essa mulher sair do meu domínio musical?" Não seria o piano dele, mas sim do Herbie Hancock e outros músicos de fora.
Mas acho que o projeto também foi sabotado pela própria Elis: se ela quisesse, ia mover mundos e fundos para estar lá fora e fazer esse disco acontecer, com ou sem o Cesar. Mas não faz isso. Ao não fazer, para mim, é a própria Elis dizendo que queria ficar aqui, cantar em sua língua, e não interessa ser essa cantora no mundo ou morar nos Estados Unidos. Creio que esse conjunto da obra faz Elis recusar uma carreira internacional.

Teve um momento em que Elis começou a discursar que queria levar seu show para dentro de uma fábrica na época do Saudade do Brasil. Dizia coisas como "eu não vou a show apresentado por patrão" ou que era filha de um chefe de expediente de uma fábrica de vidro. Esse discurso de Elis se sustentava na prática?
Ela tinha essa consciência de classe, sim. Tinha um compromisso com as pessoas mais desfavorecidas do país, mas não sei se conseguiu chegar até elas como queria, o tempo todo.
Elis tinha sonhos que não se confirmaram ou não conseguiu realizar. Sair pelo Brasil fazendo o show Falso Brilhante em periferias ou lugares em que as pessoas não pudessem pagar. Ela chegou a excursionar pelo Brasil realizando apresentações em universidades, mas queria mais. Existia o sonho de ir para a massa.
Creio que ela não conseguiu realizar exatamente esse sonho. Não se tornou totalmente uma cantora de massa, como queria. Acho que isso estava para acontecer no disco de 1982, mas ela morre.
Essa busca da Elis pelo grande público, popular mesmo, é um fenômeno que vai acontecer nos anos 1980 com Gal Costa e Rita Lee. Acredito que ela estava chegando lá.
Ela tinha essa consciência de classe, sim. Tinha um compromisso com as pessoas mais desfavorecidas do país, mas não sei se conseguiu chegar até elas como queria, o tempo todo
Esse caminho mais "popular" poderia ser visto em seu disco que seria gravado e lançado em 1982? Com base nas anotações da caderneta que você traz no livro, o que dava pra esperar desse trabalho?
Foi uma alegria obter as cadernetas de Elis que estão na nova edição da biografia, pois eu mesmo pensava outra coisa. Eu imaginava que Elis gravaria Michael Sullivan e Paulo Massadas (dupla de compositores de mega-hits radiofônicos entre os anos 1980 e 1990). Visualizava que ela faria um disco muito diferente, mais pop e radiofônico.
Ao encontrar essa caderneta, com as faixas e os artistas que pretendia gravar, havia Milton Nascimento, Tom Jobim, Eduardo Dussek, Lô Borges, Ana Terra. Ela estava trabalhando com um conceito mais pop, sim, mas também de maneira sofisticada.
Visava encontrar o equilíbrio de não ser só uma cantora dos universitários, da classe média, política e posicionada. Ela queria todo mundo, mas sem abrir mão da sofisticação que marcou sua obra, da harmonia bem-feita e da poesia bem pensada.
Mas como fazer isso? É um dos maiores enigmas do show business: obter complexidade artística com abrangência popular de audiência. São poucos os que chegaram lá, como Stevie Wonder, Tom Jobim e Djavan. É uma busca que muita gente morreu sem encontrar.
Elis tem obras que são conhecidas pelo Brasil inteiro, mas tenho a impressão de que ela queria fazer disso algo mais sistemático, só que sem abrir mão das qualidades poéticas, melódicas e harmônicas.

No livro, acompanhamos os relacionamentos de Elis, mas tem um em especial que é cativante. Milton Nascimento tinha um amor platônico por ela, que nunca se concretizou. Quando você conversou com Bituca, como percebeu que ele se sentia sobre essa relação?
Quando Milton soube que eu estava escrevendo uma biografia sobre Elis, o assessor de imprensa dele entrou em contato comigo. Milton queria me receber em casa, no Rio, para ficar o dia inteiro conversando porque ele não se viu representado na história da Elis numa outra biografia. Milton queria contar o que viveu com ela. Como eu poderia negar?
Fui lá e nos deixaram sozinhos na sala da casa. Ele contou tudo que coloquei no livro, mas com muito sentimento, com muita emoção na voz. Ele não chora com lágrima no olho, mas com a voz. Eu o questionei: "Milton, você fala de paixão, mas é do ponto de vista poético, musical?". "Não, é paixão mesmo", ele respondia. "De homem e mulher." Ali ele deixou claro: "Eu me apaixonei pela Elis".
Eu perguntei: "E como era enquanto ela estava o tempo todo com alguém e nunca era com você?". Milton, então, deu uma resposta enigmática: "Não ligava, sabia que tinha amor. Se tinha amor na Elis, então me sentia fazendo parte daquilo".
Essa busca da Elis pelo grande público, popular mesmo, é um fenômeno que vai acontecer nos anos 1980 com Gal Costa e Rita Lee. Acredito que ela estava chegando lá
Esse sentimento platônico do Milton era saciado na canção. Ele fala que compunha tudo pensando na voz de Elis cantando. Era um amor avassalador, Milton não sabia nem expressar isso.
Acho que ela sacou isso, mas ela jogava muito bem com essa situação. Elis mantinha por perto os apaixonados, mas não exatamente correspondia. Eu senti na voz do Milton um sofrimento por não ter tido Elis para ele, um caso não correspondido de amor. Mas, de alguma forma, teve isso nas músicas que ela gravou.

"Elis: Nada Será Como Antes", de Julio Maria
- Companhia das Letras
- 480 páginas
- R$ 109,90