Os dois em um. O sagrado e o humano. O intenso e o suave. Quem for à Arena do Grêmio, no dia 12 de outubro, verá a comunhão de dois filhos de Dona Canô. Caetano Veloso, 81 anos, e Maria Bethânia, 78, cantam suas trajetórias em pouco mais de duas horas. Ao mesmo tempo, agraciam a irmandade.
A reportagem de Zero Hora assistiu ao primeiro show da turnê Caetano & Bethânia, realizado nesse sábado (3), na Farmasi Arena, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro (RJ). Diante de 13 mil pessoas, as crias de Santo Amaro (BA) repassaram sucessos e transmitiram vigor.
Embora a montagem do palco seja elegante, com oito telões verticais — que exibem as imagens do show, apresentam fotos de arquivo, vídeos e animações em concomitância da canção que está sendo cantada —, não se pode esperar pomposos efeitos especiais. Obviamente, também não se pode cobrar que Caetano e Bethânia esbanjem grandes movimentos físicos pelo palco. Só a presença dos dois já é sagrada o suficiente.
Acompanhados de uma megabanda com 11 integrantes – o que inclui nomes como Jorge Helder, um dos baixistas mais renomados da MPB, e participação especial de Pretinho da Serrinha na percussão —, os irmãos ainda propiciam o principal: gogó e interpretação.
Porém, quando o show abriu com Alegria, Alegria, Caetano estava um pouco contido. Parecia incomodado com algo. Era, talvez, um problema técnico: o som de sua voz estava baixo e abafado. Essa questão foi consertada ao longo do show, mas, em alguns momentos, o volume do cantor era menor. De qualquer maneira, Caetano se soltou durante a apresentação e impôs aquele seu canto afinado e suave.
Por outro lado, Bethânia segue ostentando seu costumeiro vocal grave e potente. É como se ela preenchesse cada espaço da atmosfera do ginásio toda vez que entrasse na música. Algumas vezes, o público vibrava quando a cantora entrava nos duetos.
Depois de Alegria, Alegria, o repertório seguiu com canções como Os Mais Doces Bárbaros, Oração ao Tempo, Milagres do Povo, Dedicatória e Filhos de Gandhi (versão da música de Gilberto Gil dedicada ao cortejo de afoxé). Os dois alternavam as estrofes das músicas.
Na vez de Tropicália, Bethânia sentou-se do lado esquerdo do palco e ficou apenas observando o irmão cantar. Na música seguinte, Marginália II, rolou o inverso: Caetano se acomodou no canto direito para ver a irmã brilhar. Foi uma constante do show: sorrisos de admiração por quem está ao lado.
Em seguida, enquanto cantava a inevitável Um Índio, Bethânia derrapou na letra e admitiu levemente: “Errei”. O público aplaudiu. Os dois são entidades da música brasileira, mas também são humanos.
Da balada ao louvor
Depois de Cajuína, Bethânia deixou o palco. Era a vez do bloco do Caetano. Na primeira música, ele empunhou o violão para fazer todo ginásio cantar a balada romântica Sozinho. A verve pop e doce de Caetano seguiu contemplada com Leãozinho, na sequência, sendo outro triunfo recebido calorosamente pela plateia.
Depois da desilusão amorosa de Você Não Me Ensinou a Te Esquecer, Caetano trouxe a queridinha das novelas da Globo Você É Linda (trilha dos folhetins Belíssima, Fera Ferida, Além do Tempo e Eu Prometo). A deixa para os casais dançarem abraçados.
Para encerrar o bloco, Caetano optou por um louvor: Deus Cuide de Mim, parceria com o pastor Kleber Lucas. Regravação de uma música de 1999 lançada como single em 2022, foi a música mais recente do repertório do show. Antes, ele anunciou:
"O fato de virem crescendo enormemente o número de evangélicos no Brasil é uma coisa que tem imensa importância para mim. Por isso vou cantar o amado louvor de Kleber Lucas".
Uma parcela do público comemorou e acompanhou a música. Mas, neste momento do show, parte da plateia ficou mais dispersa e se movimentou – saiu para comprar bebida ou foi ao banheiro.
A hora da loba
Caetano deixou o palco para a vez da irmã. Se hoje as redes sociais costumam chamar uma mulher forte e independente de loba, é de se pensar que Bethânia facilmente lidera uma alcateia.
Em seu bloco, a cantora trouxe Brincar de Viver e Explode Coração, dando razão a um diálogo do filme Aquarius (2016), em que Clara (Sônia Braga) aconselha o sobrinho: “Toca Maria Bethânia pra ela, mostra que tu é intenso”.
A robustez da interpretação de Bethânia é incessante. Quando ela cantou sua versão de As Canções que Você Fez pra Mim, de Roberto Carlos, é possível que tenha convencido alguns por ali a mandarem uma mensagem de “lembrei de você” para uma pessoa errada. Momento delicado.
Quando a introdução de Negue saiu apressada, enquanto a canção anterior ainda recebia ovação, a loba sentenciou para a banda: “Podem fazer de novo?”. Um momento até esperado, dado ao histórico sempre rígido e perfeccionista da cantora no palco. Ela sabe o que faz. Para fechar o bloco, Bethânia cantou Vida, de Chico Buarque.
Homenagens e celebração
Com a volta do irmão, houve um momento de exaltação à escola de samba Mangueira, resgatando samba-enredo e culminando na música Onde o Rio é Mais Baiano, de Caetano.
A homenagem seguinte foi direcionada para Gal Costa, com a dobradinha Baby e Vaca Profana. “Gal para sempre”, bradaram os irmãos. Depois do tributo à Gal, foi a vez de outro baiano ser contemplado. Os irmãos interpretaram Gita, de Raul Seixas
Depois de O Quereres, os irmãos apresentaram uma versão de Fé, da cantora Iza. De fato, pode ser animador ver Bethânia proferir o verso “Fé pra enfrentar esses filha da p***”.
Uma das músicas mais aguardadas da turnê veio na sequência. Reconvexo sempre faz a plateia dançar. Aqui os dois irmãos ensaiaram uns passinhos no palco. Ao final, Bethânia beijou o rosto de Caetano.
Por fim, Tudo de Novo fecha o show. É a música que abre o disco ao vivo dos dois, de 1978. Segundo Caetano já relatou, é uma música que ele fez para cantar com Bethânia, uma celebração.
Talvez seja a música que melhor traduz o sentimento desta turnê:
“Minha mãe, meu pai, meu povo/ Eis aqui tudo de novo/ A mesma grande saudade/ A mesma grande vontade / Meu povo, sofremos tanto/ Mas sabemos o que é bom/ Vamos fazer uma festa/ Noites assim como esta/ Podem nos levar pra o tom”.
Ainda há um bis com Odara cantado pelo trio de backing vocals, como uma saideira festejante. Os irmãos voltam ao palco para se despedirem, Caetano até ensaia cantar, mas não prossegue. É um momento para o público celebrar o legado que viu no palco.
Show em Porto Alegre
A turnê Caetano&Bethânia chegará a Porto Alegre no dia 12 de outubro, na Arena do Grêmio. Os ingressos custam a partir de R$ 130 (meia-entrada) e pode ser adquiridos pela plataforma da Ticketmaster e na bilheteria da Arena (de terça a sábado, das 10h às 17h – não tem funcionamento em dias de jogos, feriados e emendas de feriados)
* O repórter viajou à convite da Live Nation