É impossível resumir a exuberância de Chico Buarque: músico, letrista, escritor, pensador. É certo que se trata de um narrador de seu tempo. Ou de todos os tempos. Ele completa 80 anos nesta quarta-feira (19) com uma vasta obra atemporal.
Chico acumula 537 composições e 1.302 gravações cadastradas no Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad). Ao longo de 60 anos de carreira, o compositor escreveu letras não só sobre sentimentos universais, que nunca saem de moda — amor, saudade, fim de relacionamento, amizade, angústia etc. —, mas também sobre realidades que persistem.
A canetada que Chico aplicou em décadas passadas continua com o mesmo frescor nos dias de hoje. Há vezes em que a mensagem que cai no gosto do público não era exatamente a intenção do autor quando escreveu a música. Contudo, o que costuma prevalecer é o símbolo do que a canção se torna no imaginário popular. As músicas de Chico ganham vida própria.
A seguir, GZH separou cinco exemplos que poderiam ter sido escritos em 2024.
Desigualdade social
Presente no álbum Almanaque (1981) — originalmente, saiu antes no disco gravado pela irmã de Chico, Cristina Buarque, que leva o nome da cantora —, O Meu Guri reflete a realidade de crianças e adolescentes de comunidades periféricas, especialmente dos morros cariocas. Além de sublinhar a perda da infância para a violência urbana, a música traz o ponto de vista da mãe, uma mulher pobre e em condição vulnerável.
"Chega no morro com o carregamento/ Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador/ Rezo até ele chegar cá no alto/ Essa onda de assaltos tá um horror/ Eu consolo ele, ele me consola/ Boto ele no colo pra ele me ninar/ De repente acordo, olho pro lado/ E o danado já foi trabalhar, olha aí"
Autoritarismo
Chico sofreu notória perseguição da censura durante a ditadura militar. O livro O Que Não Tem Censura, Nem Nunca Terá: Chico Buarque e a Repressão Artística Durante a Ditadura (2024), de Márcio Pinheiro, trata especialmente desse assunto.
Nesse período, algumas canções do compositor versando sobre a repressão driblaram os censores, como Cálice, feita em parceria com Milton Nascimento: "Pai, afasta de mim esse cálice/ De vinho tinto de sangue/ Como beber dessa bebida amarga/ Tragar a dor, engolir a labuta/ Mesmo calada a boca, resta o peito/ Silêncio na cidade não se escuta".
Apesar de Você também passou: "Como vai proibir/ Quando o galo insistir/ Em cantar".
Ainda, outra canção marcante em que o compositor ataca sutilmente à ditadura é Deus Lhe Pague: "Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir/ A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir/ Por me deixar respirar, por me deixar existir/ Deus lhe pague".
Meio ambiente
Um tema tão recorrente hoje em dia (ou que deveria ser), Chico versa sobre a ação humana sobre a fauna e a flora em Passaredo: "Bico calado, toma cuidado/ Que o homem vem aí (...) Some, rolinha, anda, andorinha/ Te esconde, bem-te-vi/ Voa, bicudo, voa, sanhaço/ Vai, juriti". Com referência a pássaros que voam pelo país, a música pode ser vista como um alerta às aves sobre uma ameaça constante — o homem.
A faixa foi composta em parceria com Francis Hime para o filme A Noiva da Cidade (1978), mas entrou no disco Meus Caros Amigos (1976). Embora Passaredo seja lembrada pela interpretação ecológica ou política, o processo de composição foi por outro lado, como explicou Chico em entrevista:
— A melodia do Francis sugeria um pouquinho, uma coisa de pá, pá, pá, pá. Eu achava que tinha a ver com passarinho. Peguei "o homem vem aí" e botei uma porção de passarinho junto lá. Estes passarinhos fui catando em livros, em consultas ao Tom (Jobim), a ornitólogos, especialistas que me emprestaram esses passarinhos todos.
Estigma LGBT+
Presente no musical Ópera do Malandro (1978, enquanto o álbum do espetáculo saiu no ano seguinte), Geni e o Zepelim apresenta uma personagem travesti. Embora a letra não exponha, Geni é caracterizada assim no livro e nas encenações da montagem, além do filme de Ruy Guerra lançado em 1985.
Na canção, Geni sofre com o estigma de ser travesti e por trabalhar com o corpo ("Joga pedra na Geni!/ Ela é feita pra apanhar!/ Ela é boa de cuspir!"). Um dia, chega à cidade um zepelim, com um comandante disposto a destruir tudo, a não ser que uma "formosa dama" o servir por uma noite. Ele se refere a Geni, para incredulidade da população.
Geni "domina seu asco" pelo comandante e atende aos pedidos dos moradores. A cidade é salva. A travesti sente um alívio, mas seu estigma permanece: a última estrofe repete o refrão ("Joga bosta na Geni!/ Ela é feita pra apanhar!/ Ela é boa de cuspir!/ Ela dá pra qualquer um!/ Maldita Geni!"). Ela não tinha mais utilidade para a população, que volta a tratá-la com desprezo.
Indiferença com a classe operária
Faixa que dá título ao disco de 1971, Construção narra o último dia na vida de um operário. O pano de fundo era o suposto milagre econômico do Brasil naquele momento, com prédios sendo erguidos e transformando a paisagem das cidades. O homem cai de um edifício em que trabalhava e morre, mas é tratado com indiferença pelos demais ("Agonizou no meio do passeio público/ Morreu na contramão atrapalhando o tráfego").
Uma das interpretações mais recorrentes dessa faixa seria a insignificância da classe operária diante do governo e de parte da sociedade, já que o acidente atrapalharia o movimento na via pública. Afinal, ele "morreu na contramão", no lugar errado, algo visto como um mero incômodo.
Por outro lado, em uma entrevista à revista Status, publicada em 1973, Chico assim definiu a canção:
— Não passava de experiência formal, jogo de tijolos. Não tinha nada a ver com o problema dos operários. Evidente, aliás, sempre que você abre a janela.
Ele também arriscou uma interpretação para o fato de um exercício de rigor formal e geométrico haver se tornado uma de suas canções mais comoventes e populares:
— Na hora em que componho não há intenção, só emoção. Em Construção, a emoção estava no jogo de palavras (todas proparoxítonas). Agora, se você coloca um ser humano dentro de um jogo de palavras, como se fosse… um tijolo. Acaba mexendo com a emoção das pessoas.