Era 1885 quando Chiquinha Gonzaga, considerada a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil, esteve à frente de seu primeiro grande espetáculo. Tratava-se da opereta A Corte na Roça, regida por ela no Teatro Príncipe Imperial, na capital fluminense. Era tão incomum que mulheres ocupassem a posição de regentes que jornais da época relutavam em flexionar o gênero do substantivo "maestro". Chiquinha Gonzaga deixou a todos sem opção: transgrediu a linguagem e virou a grande maestra brasileira.
Hoje, já não é raro que mulheres assumam a regência de grupos orquestrais (passaram-se quase 140 anos, afinal). Aliás, grandes orquestras do mundo têm maestras à sua frente, mas seria exagero falar em igualdade de gênero quando se trata do posto. Ainda mais no Brasil.
— Há um espaço que ainda não é plenamente ocupado — avalia Cecília Rheingantz Silveira, maestra-fundadora da Orquestra Villa-Lobos. — Com certeza temos grandes maestras brasileiras, mas ainda estamos muito atrás dos Estados Unidos e de países europeus no que diz respeito ao acesso das mulheres a postos de liderança nas grandes orquestras do país.
Representantes de diferentes gerações ouvidas para esta reportagem, as maestras Cecília Rheingantz Silveira, Gilia Gerling e Keliezy Severo são unânimes no entendimento de que é preciso abrir mais espaço para as mulheres na música de concerto (e não somente no que diz respeito à regência). Contudo, também endossam a importância de se reconhecer os avanços pelos quais o gênero já passou.
Aos 71 anos — 45 deles como maestra —, Gilia Gerling lembra das dificuldades vivenciadas no início da carreira de regente, em meados dos anos 1970. Filha do renomado maestro Frederico Gerling Jr., ela começou sua trajetória na música ainda na infância, estudando instrumentos como piano, violoncelo e contrabaixo. O interesse pela regência veio depois, já na idade adulta, e Gilia perde as contas de quantas especializações realizou na área.
— É uma função que exige muito estudo e dedicação, pois o regente precisa conhecer todos os instrumentos. Para que eu possa pedir que um músico me dê algo em determinada música, eu preciso saber exatamente o que ele consegue me dar — explica.
A maestra circulou pelo Exterior e foi aluna de nomes como o japonês Seiji Ozawa, que morreu em fevereiro último, aos 88 anos, e o estadunidense Leonard Bernstein, cuja trajetória é retratada no filme Maestro, indicado ao Oscar. Ainda assim, quando se posicionava à frente de uma orquestra formada por homens, precisava provar duas vezes mais seus conhecimentos. Ela lembra que não raro era ver instrumentistas errarem notas de propósito, como uma espécie de "pegadinha". Queriam testar se a maestra seria capaz de reconhecer as falhas.
— Passei por situações muito desagradáveis, foi preciso ter jogo de cintura — diz ela. — No meu tempo, para não ser enfrentada por eles (músicos homens), você precisava estar muito bem capacitada, não podia demonstrar insegurança. É como se precisasse provar que era capaz de estar ali para, então, conseguir quebrar o muro.
Gilia está afastada das grandes formações orquestrais (atualmente, é maestra da Da Capo Orquestra de Câmara e presta assessoria a candidatos de concursos internacionais de regência), mas acredita — e celebra — que o cenário já não é mais tão difícil para as mulheres se comparado a algumas décadas atrás.
A tese ganha força no relato de Keliezy Severo, 38 anos, titular da Orquestra Jovem Theatro São Pedro há três anos. A regente diz nunca ter passado por nenhum dissabor envolvendo questões de gênero, mas pondera que não está à frente de uma orquestra formada por instrumentistas profissionais — o que, na visão dela, poderia ser mais delicado.
— Como os meus músicos são iniciantes, a nossa relação é muito diferente — detalha a maestra. — As meninas, principalmente, têm uma adoração por mim. Eu sou uma mulher negra que vem de comunidade. Quantas como eu estão no lugar de regentes? Eu tenho muitas alunas negras e sinto que é importante para elas me ter nessa posição, que a minha vitória é a vitória delas também.
Keliezy se orgulha de estar ajudando a construir referências para as próximas gerações de musicistas de concerto e, quem sabe, maestras brasileiras. A regente lembra que sentia falta disso quando iniciou seus estudos na área há 28 anos, como aluna-integrante da Orquestra Villa-Lobos. Somente depois, na graduação e no mestrado em Música, conseguiu acessar mais a fundo o trabalho de outras regentes femininas. Ela acredita que o legado das mulheres na música de concerto é invisibilizado.
— É difícil encontrar informações, mas o legado existe. A gente luta, justamente, para quebrar esses paradigmas.
A primeira grande referência de Keliezy na regência foi a maestra Cecília Rheingantz Silveira, 63 anos, professora dela na Villa-Lobos. O grupo foi criado por Cecília há 32 anos, como projeto de extensão da Escola Municipal Heitor Villa-Lobos, localizada na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre. Formada em Música, a fundadora buscou se especializar na regência por conta da necessidade que o crescimento do grupo, hoje renomado na cena orquestral da cidade, acabou impondo a ela.
Os estudos e a experiência à frente da Villa-Lobos trouxeram à maestra a consciência de que, para ser um bom regente, é preciso ter aguçadas características que, na visão dela, dialogam perfeitamente com o feminino. Cecília desafia o estereótipo de que o bom maestro deve fazer a linha "carrasco" e destaca a importância de traços como a empatia, a sensibilidade e a capacidade de percepção.
— A figura do regente, para mim, é uma figura agregadora, que converge e catalisa, em forma de música, tudo de melhor que aquele grupo pode oferecer. Para isso acontecer, é importante a técnica musical, a imposição do corpo, coisas que todo mundo pode aprender estudando, mas também aspectos mais subjetivos. Nesses aspectos, eu acho que as mulheres podem ter mais sucesso — detalha a maestra.
Assim, a regente questiona a presença ainda desigual de homens e mulheres no posto, mas se mostra otimista diante de trajetórias como as da ex-aluna que hoje rege a Orquestra Jovem Theatro São Pedro. Keliezy e a veterana Gilia Gerling também enxergam com bons olhos o futuro do posto. Para as três, "maestra" tem tudo para se tornar um substantivo cada vez mais comum.