Por Everton Cardoso *
Mais uma vez, um fim de semana nos dá a certeza de que vivemos um momento singular para a ópera produzida em Porto Alegre: a montagem de Carmen, de Georges Bizet, levada ao palco do Theatro São Pedro, é um sinal claro de que algo muito profundo e importante está em curso na cidade. E montar obras líricas, já se sabe, não é uma tarefa simples. São necessárias uma coordenação de esforços e uma junção de habilidades e talentos bastante específicos.
Isso pode ser visto nesse acontecimento que teve duas récitas apresentadas como resultado do Ópera Estúdio, projeto da Secretaria da Cultura do RS realizado por meio da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa) em parceria com a Companhia de Ópera do Rio Grande do Sul (Cors) e a Fundação Theatro São Pedro (FTSP). Como temos visto em vários outros momentos da história recente da cena cultural, esses encontros encabeçados pela tradicional e referencial orquestra são sempre profícuos — basta olharmos a programação de anos anteriores da Ospa para rememorarmos o quanto ela tem se posicionado como uma aglutinadora e organizadora de projetos de grande envergadura. A posta em cena de Don Pasquale, em 2016, foi um marco na retomada de montagens líricas e na instauração desse processo que está em andamento. No caso da apresentação de Carmen, a execução musical esteve a cargo da Orquestra Theatro São Pedro, o que acrescentou mais uma parceria importante.
O que vimos no sábado (25) e no domingo (26) foi mais um passo para consolidar um sistema de produção lírica em Porto Alegre, já que era resultado de um trabalho formativo de cantoras e cantores no Ópera Estúdio, o que certamente movimenta a cena lírica local não só do ponto de vista da preparação e formação de profissionais da área de montagem de espetáculos em todas as suas dimensões mas também oferece a nós, público ávido por eles, ótimas oportunidades. Por cinco anos, entre 2012 e 2016, o projeto Ópera na UFRGS desempenhou muito desse papel no âmbito acadêmico. Com a interrupção, o Ópera Estúdio vem assumindo esse papel. É uma pena, porém, que não coexistam, pois seriam duas iniciativas complementares que elevariam a produção operística local a um patamar ainda melhor, sem dúvida.
A escolha de Carmen para esta ocasião é um grande acerto. Isso porque, para os cantores que aí se formam, representa a possibilidade de montar uma das óperas mais populares do repertório internacional. Tanto é que a composição de Bizet com libreto de Henri Meilhac e Ludovic Halévy é incluída no que se costuma chamar de o ABC básico de qualquer companhia — que também inclui as igualmente notórias Aida, de Giuseppe Verdi, e La Bohème, de Giacomo Puccini. Cantada em francês, a dramática e intensa história da cigana espanhola é recheada de passagens musicais belas e muito conhecidas como a Habanera e a Canção do Toureiro. Atesta a relação do público com a obra o fato de, em alguns momentos, alguém cantarolar trechos na plateia do São Pedro durante os intervalos.
A proposta cênica, dirigida por Carlos Rodriguez, não é uma representação literal do contexto espanhol original, mas uma interpretação mais livre, com elementos contemporâneos. Isso fica bastante evidente quando, no primeiro ato, uma espécie de portal de luzes néon cor-de-rosa representa o que parece ser a entrada de um clube noturno. Uma bela solução tanto visual quanto conceitualmente. Da mesma forma, as ambientações dos demais atos estiveram bastante adequadas e compuseram muito bem as cenas. A única ressalva talvez fosse a iluminação, pois em alguns momentos os rostos de solistas ficaram sombreados. Os figurinos eram todos pretos, com exceção de alguns elementos mais pontuais. Essa é sempre uma solução interessante, mas tem sido usada com frequência em montagens na cidade. Talvez possa se pensar em outras propostas igualmente simples, mas que deem a sensação de que há algo novo ou pelo menos diferente em cena.
A história da obra de Bizet gira em torno de quatro personagens centrais: Carmen, a protagonista; Don José, soldado que se apaixona perdidamente por ela; Micaela, amor dele até ele conhecer a cigana; e Escamillo, toureiro por quem a personagem título se apaixona. A trama toda se desenrola quando Carmen, cansada do amor possessivo de Don José, se encanta por Escamillo. O amante abandonado, que havia deixado sua vida como agente da lei, assassina a mulher que o deixou, mas que ele ajudou a fugir da prisão e por quem se envolveu com uma quadrilha de contrabandistas. Boa ópera que é, tem trama e personagens complexos e cheios de questões muito humanas e que, de muitas formas, nos tocam — caso do próprio debate sobre o que são amor e relacionamentos e o quanto estão permeados por possessividade e mesmo violência.
Na récita de sábado, o destaque foi a performance da mezzo-soprano Carol Braga no papel título. Com canto adequado, ela imprimiu uma sensualidade que delineou bem a personalidade da mulher que articula todo o drama por seguir suas paixões e desejar uma vida amorosa mais livre. Também se apresentaram bem o barítono Roger Nunes como Escamillo e, mais uma vez, o baixo-barítono Guilherme Roman, como o oficial comandante Zúñiga. Também foi marcante a presença do contratenor Gonzalo Lamego montado como drag queen para interpretar Mercédès, amiga de Carmen. Em tempo: o cantor tem se apresentado com frequência em outros concertos e recitais como Saturna, a drag queen a que dá vida em sua carreira. Destacaram-se, na abertura do segundo ato, a bailarina flamenca Ana Medeiros, conhecida como La Negra, e o quarteto de violões formado por Bruno Duarte, Marcel Estivalet, Felipe Herbert, Thiago Kreutz. A Orquestra Theatro São Pedro também se apresentou muito bem sob a regência de Sérgio Sisto.
Enfim, ainda que esta tenha sido uma montagem muito mais para finalizar um processo de formação, foi sem dúvida um espetáculo bem realizado. Para além das boas escolhas cênicas e de boas performances, expressa de modo bastante concreto que parcerias entre indivíduos, coletivos e instituições rendem boa ópera. E mais: produções líricas, sem dúvida, articulam e animam a cena artística e o público. Afinal, ópera é um espetáculo de encontros.
* Jornalista e crítico