Por Paulo César Teixeira
Jornalista, autor de “Esquina Maldita” (2012) e “Nega Lu” (2015), entre outros, editor do portal Rua da Margem
Era uma noite de sábado, 10 de setembro de 1983, no Art&Manha, centro cultural prestes a ser fechado pela prefeitura por perturbar o sossego dos moradores da Rua Coronel Bordini, no Moinhos de Vento. Ali acontecia a festa da entrega do disco de estreia de Nei Lisboa, Pra Viajar no Cosmos Não Precisa Gasolina, aos que haviam contribuído com o financiamento da produção independente através da venda de bônus, algo como uma versão premonitória do atual crowdfunding.
Na despensa da cozinha, a astróloga Amanda Costa – que fazia o papel de DJ, além de cuidar do caixa e atender às 11 mesas do bar – dividia o cubículo com um amplificador Gradiente e um toca-discos Philips. Era o cantinho do som. Cabeludo, de camiseta justa e calça jeans, Nei se aproximou com o vinil nas mãos a fim de rodá-lo em público, pela primeira vez.
– Sabe um guri feliz? Dava pulos feito criança – relembra Amanda.
Como bom capricorniano, Nei não leva muita fé em astrologia, mas a alegria do amigo surpreendeu Amanda, ainda mais levando em conta o ascendente em Virgem e a Lua em Touro (essa última, dizem, fortalece o encantamento que a voz de Nei inspira). Se não faltavam motivos para comemorar quatro décadas atrás, hoje muito menos. No dia 15 de outubro, os 40 anos do lançamento de Pra Viajar... serão celebrados no Centro Histórico-Cultural Santa Casa, com duas apresentações – às 18h e às 21h. O show se junta aos que Nei realizou para comemorar datas redondas de aniversário dos álbuns A Vida Inteira (de 2013), Relógios de Sol (2003) e Amém (1993).
– Optei por comemorar na ordem inversa, do mais recente para trás. Dos quatro discos, é o mais festejado. Certamente, o mais cult – diz Nei.
Desta vez, além de Paulinho Supekóvia, Giovani Berti e Luiz Mauro Filho, que habitualmente o acompanham, também subirá ao palco Augusto Licks (ex-Engenheiros do Hawaii), parceiro e, na prática, produtor de estúdio do disco festejado. Nei chamou ainda a produtora Dedé Ribeiro, com quem estava casado em 1983.
– Cada disco desencadeia uma onda de lembranças e uma releitura com os olhos de agora. Conforme o tempo acelera para trás, a coisa fica mais complexa. Talvez por isso, trouxe o Augustinho e a Dedé para me ajudarem a lidar com esse peso – assinala Nei.
O caçula dos discos de Nei foi gravado no estúdio paulistano Vice-Versa, que pertencia ao maestro tropicalista Rogério Duprat e à dupla Sá & Guarabira, precursora do rock rural. O Vice-Versa tinha sido erguido no quintal de um casarão dos anos 1940, no bairro Pinheiros, com portas e janelas em legítimo pinho de Riga (foi demolido em 2021 para a construção de um espigão). O gerente era o compositor gaúcho Fernando Ribeiro, ex-marido de Dedé, com quem havia tido o filho Lucas, então com três anos de idade.
– Como Lucas estava sendo criado pelo Nei, junto comigo, além de admiração, Fernando tinha enorme carinho por aquele jovem cantor – conta Dedé.
Tanto é verdade que músicos e equipe de produção acamparam na casa de Ribeiro, no Brooklin, após mais de 1,1 mil km percorridos de ônibus (foi preciso solicitar autorização do Juizado de Menores para que embarcasse o baterista Fernando Paiva, que não completara 18 anos). Nei já declarou não ter demasiado apreço artístico por essas velhas canções, com exceção das que compôs com Augustinho, como a canção-título e Não Me Pergunte a Hora.
– Hoje, tendo a considerar que a minha opinião não importa. O disco tem um significado que vai muito além do que eu possa achar de mim mesmo ali.
De fato, Pra Viajar… tem a ver com a atitude da juventude porto-alegrense da época. No início dos anos 1980, havia uma efervescência cultural e política na cidade. Estávamos saindo dos anos perversos do regime militar e existia uma vontade louca de mudar a vida.
É, antes de tudo, um disco corajoso, que exala a vontade de arrumar encrenca ao brincar com tabus, como drogas (a maconha é protagonista de Exaltação e Síndrome de Abstinência) e tradições (a “prenda minha” de Rabo de Foguete). Afora isso, boa parte das canções saiu em noitadas em botecos da Osvaldo Aranha ou no apartamento de Nei, no edifício Viena, na esquina com a Rua Cauduro, defronte ao Auditório Araújo Vianna.
– Eu morava no fervo e vivia a noite no bairro. Estava imerso e embriagado naquilo. O que eu escrevia brotava daquela vivência e vinha em nome de todo mundo.
No CHC Santa Casa, Nei e Augustinho planejam apresentar também músicas que compuseram para shows nos anos 1980 e nunca foram gravadas.
– Talvez algumas pessoas possam reconhecê-las, perdidas na memória – confia Augustinho.
Pra Viajar no Cosmos Não Precisa Gasolina – 40 Anos
Show com Nei Lisboa, Augusto Licks e banda. Dia 15/12, às 18h (sessão esgotada) e 21h, no Centro Histórico-Cultural Santa Casa (Av. Independência, 75), em Porto Alegre. Ingressos a R$ 200, com meia-entrada para estudantes, 60+ e classe artística. À venda em sympla.com.br.