Pouco a pouco, a rua vai se enchendo de gente. Em pé, logo depois do meio-fio, tomando cuidado com os carros que vêm à direita e à esquerda, o público assiste a banda tocar blues em uma sexta-feira à noite. Não há palco. Baterista, baixista e guitarristas se apresentam na calçada mesmo, debaixo do toldo do bar, na esquina das ruas Saldanha Marinho e Gonçalves Dias.
Há 20 anos, Claudio Alexandre da Silva Kohls adquiriu o ponto no bairro Menino Deus, em Porto Alegre, que antes fora armazém de secos e molhados e um pequeno restaurante de frutos do mar, que não vingou, levando a dona a vender tudo e mudar-se para Las Vegas. Ex-mecânico de motos e filho de dono de bar, Alexandre queria que o lugar fosse um boteco onde as pessoas pudessem comer batatas fritas regadas a cerveja. Apaixonado por rock e MPB, ele passou a convidar amigos da música para despretensiosas apresentações toda sexta-feira à noite, no estilo voz e violão. O projeto Música na Calçada começou em 2014 com o já falecido Luciano Fortes. Em seguida, veio Santiago Neto, vocalista da Sombrero Luminoso, e Fabio Lee, baterista do TNT.
Um foi convidando o outro e, assim, personalidades importantes do rock gaúcho foram aparecendo para fazer um som na esquina, como o guitarrista Tchê Gomes, também do TNT, o cantor e compositor Júlio Reny, o cantor Wander Wildner, dos Replicantes, o guitarrista Zé Flávio, do Almôndegas, o cantor e violonista Fabrício Beck, da Vera Loca e da Bando Alabama, além de nomes gaúchos da MPB, como os compositores Gelson Oliveira e Marcelo Delacroix.
— Canja tiveram várias também. Até o Borghetti (Renato) já deu canja aqui na esquina, além do Bebeto Alves e o Nelson Coelho de Castro. Um conhece o outro e eles vão se chamando — conta Kohls, 48 anos.
Longe de ser uma tradicional casa de shows, o Bar do Alexandre tornou-se um dos palcos mais procurados pelos músicos de Porto Alegre, ainda que tenham de tocar na calçada mesmo, para um público que, embora não fique sentado, presta atenção na música e vem aos montes. Há noites em que a esquina reúne uma multidão.
Cliente da casa e atração para um grande público na noite desta sexta (31), o cantor e compositor Frank Jorge, dos Cascavelletes e da Graforréia Xilarmônica, gosta do clima de informalidade e de tocar bem perto das pessoas.
— A reação é imediata, tu percebe de maneira mais viva e intensa a receptividade do público. Na Europa, na Argentina e até no Rio, é muito comum ver artistas tocando na rua, interagindo com a plateia.
Na sexta anterior, 23 de junho, cerca de cem pessoas apreciavam o blues da For The Kings. Baixista da banda, Douglas Caberlon, 42 anos, nunca havia se apresentado em uma calçada.
— Tirando fora festivais a céu aberto, é a primeira vez que toco na rua. O legal é que não tem limite para público — disse, no intervalo da apresentação.
Com todas as mesinhas do bar ocupadas e a esquina amontoada de gente, o casal Cícero Jardim e Alma Reusch, ambos com 60 anos, estacionaram o fusca do outro lado da rua e sentaram-se no capô para assistir ao show. Amantes de rock e de blues, podiam prestar atenção na música sem se acotovelar.
— A gente ia trazer cadeiras, porque na outra noite em que viemos juntou gente para caramba ali na esquina, mas esquecemos — relatou Alma, recostada no fusca.
Ex-baixista da Pata de Elefante e atualmente tocando na Fernando Noronha & Black Soul, Edu Meirelles, 43 anos, erguia a cabeça acima do público para ver uma pontinha da performance da For The Kings.
— Rola uma confusão, uma troca de energia. Tocar bem próximo das pessoas faz diferença, rola um calor — avaliou.
Aposentada, Marilene Caino, 63 anos, espiava o movimento do bar pela janela de seu apartamento, no segundo andar de um prédio na Gonçalves Dias. Ela diz ser uma das poucas da vizinhança que não reclama do barulho das bandas tocando toda sexta-feira à noite. Não é muito do rock, mas se rola uma música brasileira, assiste de camarote.
— Os shows dão um movimento bacana, isso nos traz sensação de segurança. Às vezes, pego uma taça de vinho, sento aqui na sacada e fico ouvindo a música. Quanto toca Tim Maia, é genial — contou a vizinha do bar.
Como os shows começam e terminam cedo, nunca passando das 22h, a clientela é formada em sua maioria por um público mais velho, a fim de conversar e ouvir música em vez de ir a uma festa mais ruidosa.
— É legal que vai um público de uma faixa etária que acompanhou a minha trajetória. Sem falar nas figuras do jornalismo que batem ponto aqui toda semana, como o Carlos Wagner (ex-repórter de Zero Hora e um dos jornalistas mais premiados do Brasil) — diz Frank Jorge.
Alexandre Kohls garante que ele é quem melhor paga músicos em Porto Alegre, repassando 80% do couvert cobrado do público para os artistas. O restante fica para fotógrafo e técnico de som, ambos contratados pela casa.
— Eu não fico com couvert. Músico, para mim, não é produto. Ganho com a venda da batatinha e da cerveja — afirma.
Sem revelar nomes, ele diz que há uma fila de espera de bandas querendo tocar no bar. Inclusive, artistas nacionais teriam manifestado interesse. Mas não consegue tirar tempo para negociar a vinda de tais atrações ilustres.
— Não sou um produtor musical, sou um "bodeguero" mesmo. O "corre" é grande, sirvo almoço, lanche. Tudo isso já me dá bastante trabalho. Além do mais, tenho uma vidinha meio rock'n'roll, né? — explicou.
Pelo grande público que se reúne na Saldanha Marinho com a Gonçalves Dias a cada sexta à noite, parece que nem precisa.
Cachorro que morreu em 2019 era símbolo do bar
Além dos encontros musicais das sextas, o Bar do Alexandre também ficou conhecido pelo mascote Alemão. Morto em 2019, o cachorro que acompanhou Kohls por 15 anos era um "patrimônio" do Menino Deus.