Quando, em meados dos anos 1980, Nerci Padilha, o Nito, saiu de Santo Ângelo rumo a Porto Alegre, só tinha uma coisa em mente. Queria ter um bar onde pudesse reunir duas das coisas de que mais gostava na vida: música popular brasileira e a comida feita pela mãe, Florisbela Padilha, a Dona Filhinha. E logo conseguiu, pois não demorou a abrir um estabelecimento modesto na Rua Demétrio Ribeiro. Mas foi só alguns anos depois, no prédio de número 105 da Av. Cel. Lucas de Oliveira, que ele viria a escrever seu nome na história e na geografia da cidade. Foi ali que inaugurou o Bar do Nito, espaço que completa 30 anos de fundação neste mês, com o status de um dos maiores redutos da MPB na capital gaúcha.
Nito apostava todas as suas fichas que o bar daria certo. Foi por isso que arriscou comprar o ponto mesmo sem dinheiro em mãos, contando com a boa vontade do proprietário para parcelar e com sua fé inabalável de que todo mês conseguiria pagar o valor da prestação. E não foi uma aposta no escuro. Seu raciocínio era simples, mas cheio de lógica. Se ele, que cresceu ouvindo os programas de calouros da Rádio Nacional e assim foi cativado pela MPB, sentia falta de um espaço dedicado ao gênero musical em Porto Alegre, mais gente também deveria sentir o mesmo. Então, Nito pensava, não haveria como o bar não ser um sucesso.
— Eu sabia que ia dar certo porque Porto Alegre praticamente não tinha um bar assim. Era mais coisa de outros gêneros musicais. E como eu queria fazer um espaço para retratar desde o início da música popular brasileira, com Orlando Silva e aquele pessoal, até chegar os dias de hoje, eu tinha certeza de que ia agradar todo mundo — lembra ele, hoje com 82 anos.
Dito e feito. Tanto que, ao longo desses 30 anos, o bar reuniu diferentes gerações de porto-alegrenses, viu sentar em suas mesas nomes como Beth Carvalho, Chico César e os músicos do quarteto MPB4, e tornou-se o ponto preferido de figuras que viraram lendas da cidade, como o jornalista Paulo Sant'Ana. Também se adaptou às mais diferentes fases do comportamento do público, pegando épocas como aquela em que ficar até seis horas da manhã sentado na calçada de um botequim não causava nenhum temor, até os tempos atuais, quando voltar para casa mais cedo virou medida de segurança intrínseca à boemia.
E teve ainda suas fases próprias. A mais marcante delas em 2011, quando o Bar do Nito deixou de ser propriamente do Nito. Já sem poder contar com a parceria da mãe, que faleceu, no comando do estabelecimento, Nito repassou o ponto ao ator Fernando Waschburger, que assumiu o espaço com a missão de manter ali a mesma essência que lhe fez ser frequentador assíduo do Bar do Nito durante anos, antes de vir a se tornar proprietário.
— Vi ali uma oportunidade de não deixar o meu bar preferido terminar — resume Waschburger.
Por isso que o espaço segue Bar do Nito no nome e no palco, pois o antigo proprietário está sempre por ali, apresentando em voz e violão clássicos da música popular brasileira que tanto ama para o novo público do bar que um dia fundou. Algo que, ele confessa, é o que lhe mantém vivo.
— Se quiser me destruir, é só me tirar o violão e me tirar da noite — diz Nito.
Assista a Nito cantando "João e Maria", de Chico Buarque e Sivuca:
Mas, ainda que a essência tenha sido mantida, o botequim deixou de ser um reduto apenas musical. Em 2017, virou palco também para espetáculos de teatro, inspirado em uma prática comum em estabelecimentos de países vizinhos como Uruguai e Argentina: sair para jantar e, no próprio restaurante, sentado à mesa, poder apreciar uma montagem teatral.
Deu tão certo que o espaço chegou a abrigar espetáculos do Porto Verão Alegre e, conforme o atual proprietário, passou a atrair um público diferente daquele que já o frequentava. Assim como desde sempre há quem vá ao Bar do Nito para ouvir MPB, agora há também quem o procure pela dramaturgia.
— Hoje, montar um espetáculo de teatro, colocar em cartaz e esperar que o público venha é muito difícil. Então, a gente bota o teatro onde o público está. Dessa forma, conseguimos integrar uma noite agradável, um drinque, um petisco, com a experiência de assistir a um espetáculo. Isso está virando uma característica muito especial da casa, sem abrir mão do seu DNA principal, que é a música popular brasileira — explica Waschburger.
E, para além do teatro e da música, a ideia é fazer do Bar do Nito um point cultural na cidade. Nesse sentido, o espaço também vem abrigando eventos como lançamentos de livros, saraus e exibições cinematográficas, entre outros. Só o que faltava era conseguir englobar as artes visuais.
A completude veio no último dia 7, quando o Bar do Nito inaugurou também a exposição Ô, Sorte! – Retratos da MPB, com fotografias de grandes nomes da música popular brasileira feitas pelo fotógrafo Daniel Marenco. Ele, aliás, faz parte da nova leva de frequentadores do local. Comprou um apartamento ao lado do bar e um dia estranhou a música que subia até o andar da sua residência. Desceu para conferir do que se tratava, encantou-se e nunca mais saiu dali. Literalmente, porque agora suas fotos farão parte do acervo permanente do bar.
— Com isso, conseguimos fechar todas as artes — celebra Waschburger. — Isso é importante, porque estamos em um período muito difícil em termos de espaço para as representações artísticas em Porto Alegre. Então, a casa se presta a isso também. No nosso palco, tu sempre vais encontrar artistas se apresentando, fazendo seus trabalhos e recebendo por isso.
Tanto Waschburger quanto Nito concordam que o bar está "trintando" em sua melhor fase. Sobreviveu ao período difícil da pandemia e vem se consolidando como referência nesta nova proposta de ponto cultural, ao passo em que permanece fazendo jus à fama de reduto da MPB que o fundador se orgulha de ter construído.
— Tu sabes que o bar é comentadíssimo lá em São Paulo e no Rio? Tenho uns escritos de gente que vai no bar e deixa recados lá para mim que são maravilhosos. O pessoal dizendo: "Bar assim não se encontra no Rio de Janeiro". É um orgulho, né? — diz Nito, confidenciando que, diante desta nova fase do local, sente-se vendo um filho crescer e ganhar o mundo: — Eu fico emocionado.