Há músicas que viram hinos não oficiais das localidades que homenageiam. É possível lembrar New York, New York, tema do filme homônimo de 1977, que se consolidou na voz de Frank Sinatra. Outro exemplo é Trem das Onze, composição de Adoniran Barbosa, que se tornou um hino informal de São Paulo. No Rio Grande do Sul, há o Canto Alegretense, composto por Bagre e Nico Fagundes. Já a capital gaúcha tem Deu pra Ti, de Kleiton & Kledir. Embora haja também outras canções representativas — Porto Alegre É Demais ou Anoiteceu em Porto Alegre —, a música dos irmãos pelotenses tem uma ligação afetiva mais longeva. Esse hino não oficial de Porto Alegre é o tema do quinto episódio da série Ao Pé da Letra, que aborda canções emblemáticas produzidas por artistas do Estado.
Deu pra Ti abre o segundo disco de Kleiton & Kledir, de 1981, que leva o nome da dupla. Naquela época, os irmãos já viviam no Rio de Janeiro, após terem primeiramente se projetado com a banda Almôndegas nos anos 1970.
Tudo começou com Kleiton, que compôs um instrumental com uma levada latina. Kledir frisa que o jeito da dupla fazer canções apresenta influências do Uruguai e da Argentina. Para exemplificar, ele brinca que se outra pessoa do lado da fronteira fizesse Deu pra Ti, seria Fito Páez ou Charly Garcia.
Em cima do ritmo latino, Kleiton criou uma grade harmônica com vários acordes. Depois, foi acrescentando a melodia aos poucos. O músico descreve o processo como bem "burilado" e "cuidadoso".
— Quando compus a parte musical de Deu pra Ti, eu imaginava que ficaria com alto nível de qualidade, uma bela canção popular, que pudesse ser escutada em qualquer lugar do mundo como algo bem feito e prazeroso — lembra Kleiton.
Então, entregou a versão instrumental para Kledir escrever a letra. Era um momento em que a dupla sentia muita saudade do Sul. Naquele período, todas as lembranças de Porto Alegre, onde haviam vivido nos anos 1970, eram maravilhosas. Era como se bastasse ir à Capital para dar um fim no baixo astral.
— Eu digo que é uma canção de exílio porque é alguém com saudade. Então, fico recordando coisas muito lindas, sendo que, inclusive, termina com a lembrança do Beira-Rio, que é um grande espetáculo (risos) — provoca Kledir.
— Fui obrigado! Fui obrigado a cantar essa música! Eu sou gremista! — defende-se Kleiton.
— Ele costuma dizer que a letra é colorada e que a melodia é gremista. É uma sutileza que só o Kleiton consegue perceber — diverte-se Kledir.
Conforme Kleiton, Deu pra Ti se tornou uma referência para a carreira da dupla como símbolo de um gaúcho moderno, que curte sua origem, mas, ao mesmo tempo, é cosmopolita — enxerga o mundo como uma grande ideia. Ele ressalta que, até então, o Estado era mais reconhecido por sua música rural e regionalista.
— Na hora em que a gente vem cantando Porto Alegre, não estamos cantando as belezas do campo, mas sim a vida urbana — completa Kledir.
Saudade
Para Kledir, ao voltar a Porto Alegre, é possível reencontrar uma energia mágica propiciada pelo paralelo 30. Até por isso o paralelo é citado na canção.
— Quem é gaúcho sabe disso. Eu e o Kleiton saímos de Porto Alegre há tantos anos e sempre que precisamos recarregar as baterias, voltamos para o nosso Sul — pontua.
Não é só Porto Alegre: Deu pra Ti também cita o município litorâneo de Garopaba (SC). Era a praia que os irmãos costumavam frequentar na época em que viviam na capital gaúcha.
— Garopaba é a melhor praia do Rio Grande do Sul, que, casualmente, fica em Santa Catarina — sublinha Kledir.
Em Deu pra Ti, o Bom Fim ganha atenção especial, pois é o bairro onde a dupla morou. O Bar João (fechado desde 2003), um dos pontos boêmios que agregava todas as tribos na Osvaldo Aranha, ganha citação. Há um alô para a "tchurma" do Bom Fim.
— Era a nossa turma. Ao mesmo tempo, as notícias que me chegavam dessa época, quando a gente não estava mais lá, era de uma galera que estava fazendo cinema e teatro. Esse verso ("Alô, tchurma do Bom Fim") englobava esse pessoal que produzia coisas tão bacanas — diz Kledir.
Outro ponto nos arredores do Bom Fim citado na letra é a Redenção. O parque fazia parte da vida dos irmãos, que passavam por ali a caminho da faculdade.
— É um parque não só nosso, mas que todo mundo adora e frequenta. Um símbolo da nossa Capital — atesta Kledir.
O amigo José Fogaça também é lembrado na música. Ele atuou como parceiro musical da dupla desde os tempos de Almôndegas, tendo sido compositor do clássico Vento Negro. Ao citá-lo, Kledir quis expressar a saudade de um amigo que estava longe, já na carreira política.
Quem também estava distante era Falcão, que já tinha saído do Internacional para a Roma, da Itália. Kleiton ressalta que o jogador não é só um ídolo colorado, mas de todos. Ele lembra que Falcão chegou a escrever um telegrama para a dupla agradecendo a menção na música.
Kledir relata que há casos de fãs que escreveram a eles para contar sobre idas a Porto Alegre só por causa de Deu pra Ti: turistas motivados pela letra da canção que viajaram à capital gaúcha para encontrar a Redenção e o Bar João.
— Viramos agentes turísticos de Porto Alegre — ri Kledir. — Às vezes tenho que orientar as pessoas: "Olha, paralelo 30 é só um... paralelo".
"Deu Pra ti"
(Kleiton e Kledir)
Deu pra ti
Baixo astral
Vou pra Porto Alegre
Tchau
Deu pra ti
Baixo astral
Vou pra Porto Alegre
Tchau
Quando eu ando assim meio down
Vou pra Porto e... bah!, tri legal
Coisas de magia, sei lá
Paralelo 30
Deu pra ti
Baixo astral
Vou pra Porto Alegre
Tchau
Deu pra ti
Baixo astral
Vou pra Porto Alegre
Tchau
Alô tchurma do Bom fim
As guria tão tri afim
Garopaba ou Bar João
Beladona e chimarrão
Deu pra ti
Baixo astral
Vou pra Porto Alegre
Tchau
Deu pra ti
Baixo astral
Vou pra Porto Alegre
Tchau
Que saudade da Redenção
Do Fogaça e do Falcão
Cobertor de orelha pro frio
E a galera no Beira Rio
Quando eu ando assim meio down
Vou pra Porto e... bah!, tri legal
Coisas de magia, sei lá
Paralelo 30
Deu pra ti
Baixo astral
Vou pra Porto Alegre
Tchau
Deu pra ti
Baixo astral
Vou pra Porto Alegre
Tchau