Por Arthur de Faria
Músico e jornalista, finaliza o primeiro volume de “Porto Alegre – Uma Biografia Musical” e o álbum de estreia da Tum Toin Foin Banda de Câmara
É difícil para um brasileiro entender o que significa uma figura como Astor Pantaleón Piazzolla (1921-1992) para a cultura de sua terra.
Com bem lembrou certa vez Caetano Veloso, somos um país de iletrados. E isso fez com que a canção ganhasse uma importância e um protagonismo cultural que talvez nem hoje tenha entre os nossos hermanos. Desde pelo menos a bossa nova, a poesia brasileira mais significativa fez o mesmo caminho de um de seus grandes, Vinicius de Moraes: seu protagonismo migrou do livro para a canção.
Isso nunca aconteceu na Argentina.
No ano em que Piazzolla montou a primeira orquestra só dele, 1946 (início do primeiro mandato de Juan Domingo Perón na Presidência do país), seu país tinha uma taxa de analfabetismo de 13,6%. Jorge Luis Borges estava se consagrando, Julio Cortázar apontava no horizonte logo ali dobrando a curva. Do lado de cá da fronteira, no Brasil pós-Estado Novo, nossos assustadores 56,8% de analfabetos estavam imersos em baião, samba-canção e bolero. Tudo canção, música cantada, com letra.
Por que que eu tô falando isso?
Para que você tente imaginar algum momento em que o artista mais polêmico e comentado do Brasil foi um artista 90% instrumental. Um momento em que o protagonismo cultural não fosse de João Gilberto, Caetano Veloso ou Chico Buarque, mas de Radamés Gnattali, Egberto Gismonti ou Hermeto Paschoal.
Tem esse momento?
Não tem.
(Sim, estamos fazendo um recorte específico: entre quem faz três refeições por dia, lê artigos de jornal, é adepto do terrabolismo e acha que ciência não é opinião – o mundo real é outra coisa, sempre foi, sabemos disso.)
Resumindo rapidamente essa figura que completaria cem anos neste 11 de março: nascido em Mar del Plata, o filho único Astor foi parar em Nova York graças ao espírito empreendedor do seu pai, o Nonino de Adiós, Nonino, sua obra mais célebre. Lá, apaixonou-se por um instrumento que os alemães tinham inventado para substituir o órgão nas igrejas que não tinham dinheiro para ter um. Chamava-se bandoneon e era perfeito para tocar, por exemplo, Bach. E era Bach que o menino tocava. Mas claro: de descendência italiana e sendo argentino nos anos 1930, o tango era uma presença forte (tire os judeus e os italianos do tango e sobra pouca coisa).
Naquele momento, o gênero que ainda não havia incorporado totalmente o bandoneon já estava longe de ser aquela música simples da virada do século. Do final dos anos 1920 até o final dos 1940, graças a gente como Julio de Caro, Osvaldo Pugliese, Aníbal Troilo, Horácio Salgán e muitos, muitos outros, o tango era das músicas populares mais sofisticadas do Ocidente. Uma música que, ao contrário de quase todas as outras, não se monta a partir de um ritmo que se repete (a levada do samba ou do jazz, por exemplo) nem mantém um pulso regular.
O tango se acelera e retarda de uma forma que só tem paralelo na música de concerto. E ainda assim, é para dançar – se dança nele a melodia, não o “ritmo”.
Uma música que, sim, tinha muitos cancionistas desde que Carlos Gardel inventara de pedir para botarem letra num gênero até então instrumental. Isso tinha sido ainda nos anos 1910, quando Gardel fazia já muito sucesso, mas cantando milongas vestido de gaucho. Só que o tango maduro se organizou basicamente pelas grandes orquestras, que faziam pelo menos metade do baile com música puramente instrumental. Não há paralelo no Brasil.
Pois é nessa música que o jovem revolucionário vai entrar, quando volta de Nova York e tenta viver de música na Buenos Aires dos anos 1940. Para estudar a música que lhe interessava – a erudita –, precisava de dinheiro. Para conseguir dinheiro, foi tocar bandoneon em orquestras de baile. Logo se consagraria como um talentoso – ainda que prolixo – arranjador.
Quando estavam acusando Piazzolla de matar o tango, o que ele fazia era dar ao gênero então decadente uma longa sobrevida.
Consegue uma bolsa e se manda para Paris, para estudar… composição (erudita). Com a melhor professora do planeta: Nádia Boulanger. Tô exagerando? Toma aí uma listinha de alunos da gênia: Quincy Jones, Egberto Gismonti, Aaron Copland, Burt Bacharach, Philip Glass, Camargo Guarnieri, Almeida Prado… Mais umas aulinhas de reforço para o grande amigo Stravinsky e por aí vamos.
E aí é como conta o melhor livro entre os tantos já escritos sobre Astor, livro que aliás acaba de ganhar nova versão: Piazzolla, el Malentendido, do capo Diego Fischerman e de Abel Gilbert.
Não foram muitas aulas com Nadia, mas em algum momento Astor se deu conta de que a melhor música que poderia fazer estava diretamente ligada a misturar o tango com suas principais referências eruditas: Bach e os caras do começo do século 20, Stravinsky e Bartók à frente.
Quando voltou a Buenos Aires, em 1955, já tinha um grupo totalmente all star esperando por ele, e com as partituras que havia mandado pelo correio. Essa primeira orquestrinha, o Octeto Buenos Aires, incorporava a guitarra elétrica jazzista de Horacio Malvicino e levou o gênero aonde ele jamais havia ido. Seria só a primeira vez que o tango seria sequestrado por Astor – para ser devolvido com Síndrome de Estocolmo.
A partir do Quinteto Astor Piazzolla, em 1960, ele vai se tornar não um fenômeno de popularidade, mas um eterno gerador de polêmica, num momento em que o tango perdera totalmente o terreno para o rock e o – que os argentinos chamam de – folklore.
Hoje, vendo retrospectivamente desde um lugar onde, em sua terra, sua música é já tão cânone quanto Gardel ou Troilo, é evidente que, quando estavam acusando Piazzolla de matar o tango, o que ele fazia era justamente dar ao gênero então decadente uma longa sobrevida até sua ressurreição, entre jovens músicos dos anos 1990.
Mas, na época, Piazzolla foi intensamente atacado, o que ele sempre soube usar a seu favor, manejando o marketing de “maldito” como ninguém. No final dos anos 1960, ao lado da peculiar figura de Horacio Ferrer, começou a escrever uma enxurrada de canções como Balada para Un Loco. Hoje, poucas delas estariam em qualquer eleição de seus melhores momentos, mas na época geraram ainda mais polemica sobre “isso é tango?”.
Por outro lado, conquistaram um público jovem que ouvia, basicamente, jazz e o rock nacional que então explodia na Argentina. Nos anos 1970, atrás de trabalho, Astor foi para a Itália, experimentou suas bandas elétricas/eletrônicas (que muitos amaram, mas uma legião de piazzoleiros fanáticos de então viu como uma traição) e começou a construir uma reputação europeia. Retomou o quinteto no final dos anos 1970 – e aí quem se sentiu traído foram os jovens que estavam adorando o Piazzolla de camisa floreada e lenço no pescoço, rodeado de moogs e órgãos Hammond (e que gravou vários álbuns de sucesso, como Piazzolla-Mulligan/Reunión Cumbre, ao lado do saxofonista Gerry Mulligan).
Mas foi só a partir daí que Astor começou efetivamente a ser reconhecido como o que era: um dos maiores compositores do século 20, à frente de um grupo de “música popular de câmara” que era também uma das formações mais impressionantes da música em atividade naquele momento. Todos os festivais de jazz os queriam, e é só ouvir as dezenas de discos ao vivo pra sentir o impacto que essa música causava. Até dinheiro começou a ganhar.
Só que a vida é irônica, e o coração começou a dar problema. Desmontou o quinteto, montou um sexteto de som tenso e angustiado, mas logo decidiu que não queria mais ter um grupo fixo, e sim ser chamado para escrever para orquestras ou grupos de câmara eruditos como o The Kronos Quartet ou o Duo Assad. Estava vislumbrando uma consagração também nessa área quando uma hemorragia cerebral o derrubou. E o manteve derrubado por dois longos anos até que finalmente morreu, em 1992.
Com seu ego tão imenso quanto seu talento (não deixe de ver Os Anos do Tubarão, sensacional documentário baseado nas memórias de seus filhos que está disponível na HBO Go), ele iria adorar a gigantesca programação em sua homenagem que está armada em Buenos Aires (veja abaixo). Mas eu, que sou fanático mal de Astor, acho que, beeeem lá no fundo, algo dele ia achar uma merda estar no lugar onde sempre sonhou estar: institucionalizado como patrimônio nacional.
Para lembrar o maestro
- Começou na sexta-feira e se estende até o dia 20 uma longa programação em homenagem a Astor Piazzolla promovida pelo governo de Buenos Aires, pela fundação que leva o nome do músico e pelo Teatro Colón, da capital argentina, com curadoria de Nicolás Guerschberg e Daniel “Pipi” Piazzolla, neto do músico. São concertos diversos, praticamente todos os dias no período, com músicos de destaque da cena contemporânea e outros que chegaram a trabalhar com o maestro. Haverá transmissão online, gratuita, para todo o mundo, diretamente do palco do histórico teatro portenho no site teatrocolon.org.ar, onde também é possível encontrar detalhes de toda a programação.
- O grupo Escalandrum, liderado por Daniel “Pipi” Piazzola, está lançando o disco 100, em homenagem a Astor Piazzolla, com versões de músicas do maestro e “um solo de bandoneon inédito do grande Astor”, segundo anuncia a banda em suas redes sociais. O álbum estará disponível a partir do dia do centenário, a próxima quinta-feira, em canais de streaming. Outras informações podem ser obtidas em escalandrum.com.
- O músico e pesquisador Arthur de Faria, que assina artigo sobre Piazzolla em GZH, fez uma playlist “com quase tudo o que Piazzolla compôs que está disponível no Spotify”, relata. As músicas selecionadas são a versão preferida – de Arthur, que explica: “Sim, eu reescutei, por meses, quase cem discos para fazer essa lista”. Ouça em gzh.rs/Astor100.
- Entre os novos discos e as novas músicas que o homenageiam no Brasil está YbY Vol. 1, álbum lançado neste mês pelo trio formado pelo acordeonista Bebê Kramer, o violonista Paulinho Fagundes e o violinista Vagner Cunha. São sete faixas em um conjunto que evoca a ancestralidade dos sons característicos do sul do Brasil, entre as quais está uma versão de Oblivion, de Piazzolla.
- A dica de filme sobre o maestro é Piazzolla – Os Anos do Tubarão, cinebiografia documental dirigida pelo alemão Daniel Rosenfeld que fez carreira em festivais entre 2018 e 2019 e hoje está disponível no HBO Go. O filme contém diversas imagens da vida particular do músico, vídeos de apresentações clássicas de Piazzolla junto ao seu lendário quinteto e ainda registros de viagens ao Rio de Janeiro, onde gravou com Tom Jobim para o programa Chico & Caetano (há vídeos no YouTube com essas gravações).