Um dos maiores músicos que a Argentina já produziu, do lado de cá da fronteira Astor Piazzolla mantém raros – porém apaixonados – seguidores. No Rio Grande do Sul, em que a proximidade geográfica e cultural com o país vizinho é maior do que a de outros Estados brasileiros, seu legado sobre instrumentistas e compositores se faz notar.
– A música regional gaúcha se relaciona intensamente com a Argentina, mas mais com o chamamé do que com o tango. Ou seja, as trocas culturais são mais intensas com a província de Corrientes, por exemplo, do que de Buenos Aires. E Piazzolla é uma expressão da musicalidade portenha – explica o acordeonista Fernando Ávila.
Ávila aponta que a influência de Piazzolla recai sobre músicos pontuais no Brasil, como Oscar dos Reis, Carlitos Magallanes, João Vicenti e Arthur de Faria. O próprio Ávila também pode ser integrado a esse time. Para ele, o gênio argentino, cujo centenário se completa na quinta-feira, é objeto de veneração:
– Ouço Piazzolla absolutamente todos os dias. Não há exceção. Tenho 20 discos de vinil dele, coloco ao menos um para rodar por dia.
As audições reverberam também na composições de Ávila. Aos 27 anos, ele já tem músicas rodando o mundo em festivais de acordeom. Seu Tango Pour Carla, por exemplo, foi executado por um polonês no mais conceituado concurso do mundo do instrumento, o Trophée Mondial de L’Accordéon. Trata-se de uma composição inspirada na musicalidade de Piazzolla, que cita trechos de Los Pájaros Perdidos.
– Piazzolla revolucionou a expressividade da música argentina assim como Tom Jobim o fez com a música brasileira – define Ávila.
O acordeonista Oscar dos Reis concorda com a comparação, mas aponta que a resistência enfrentada por Piazzolla foi maior do que a de Jobim.
– A bossa nova teve críticos, mas o que Piazzolla passou foi muito pesado (quando reinventou o tradicional gênero; sobre isso, leia texto de Arthur de Faria). Chegaram ao ponto de esperá-lo no aeroporto para vaiá-lo quando chegava da Europa. Por outro lado, a discussão sobre o papel dele no tango ajudou a projetá-lo – afirma o instrumentista.
Oscar começou a ouvir Piazzolla nos anos 1980, quando experimentou o estranhamento que o maestro já havia causado entre os hermanos. O músico viu vários amigos torcerem o nariz para as dissonâncias e harmonias inusitadas do chamado “nuevo tango”. Mesmerizado pela musicalidade de Piazzolla, Oscar mergulhou cada vez mais na obra do argentino. Decidiu montar um show com repertório exclusivamente voltado ao ídolo. E então precisou encarar não só a resistência dos amigos, mas a falta de partituras dedicadas ao homenageado.
– Hoje todo mundo tem a impressão de que o Piazzolla está acessível. Nem sempre foi assim – lembra Oscar.
A partir de suas próprias transcrições, o gaúcho gravou em 1999 o disco Libertango, que representou um marco na sua carreira. Atualmente, é conhecido como um exímio intérprete do mestre. E o tempo das críticas ficou para trás – antes da pandemia, as casas e teatros costumavam lotar para vê-lo.
– Há um grande interesse das novas gerações por Piazzolla. É o que percebo a cada apresentação. No entanto, é inegável que existe uma crise a música de concerto em geral. Acredito que é preciso mais espaço na mídia. Mas esse não é um problema restrito ao Piazzolla – avalia Oscar.
Para o centenário do ídolo, a ser comemorado na quinta-feira (11/3), Oscar prepara um clipe da música Astor, criada a partir de elementos das composições do homenageado, com participações de Daniel Seimetz (piano), Rodrigo Maciel (violino), Rafael Diniz (guitarra), Tiago Andreola (contrabaixo) e Cristiano Tedesco (bateria). Participarão do vídeo também os bailarinos Derly Oviedo e Letícia Paranhos.
O bandoneonista Carlitos Magallanes também encarou resistência para difundir a obra de Piazzolla no Estado. Natural do Uruguai, foi um dos primeiros a realizar shows voltados à obra do autor em Porto Alegre. Em 1975, mudou-se para a Capital.
– Quando começamos a tocar Piazzolla aqui, nem todo o mundo o conhecia – lembra Magallanes.
O instrumentista também viveu uma experiência inesquecível relacionada a Piazzolla em Porto Alegre. Quando o compositor esteve na cidade, em 1977, viu uma apresentação de tango em quarteto de bandoneon, baixo, piano e violino.
– Piazzolla era uma pessoa muito querida, gente boa mesmo. Quando chegou, veio direto cumprimentar os músicos – lembra Magallanes.
Para Oscar dos Reis, a musicalidade de Piazzolla é melhor assimilada na parte meridional do país, na comparação com outras regiões:
– A pulsação do tango é semelhante à pulsação da nossa música (do Sul).
Oscar crê que ainda há muito a fazer pela música de Piazzolla no Brasil.
O argentino pode servir de referência, por exemplo, para quem estudar acordeom, instrumento popular no Sul, mas ainda majoritariamente associado aos fandangos.
– Como acordeonista, posso dizer que Piazzolla é para mim uma dádiva, uma bênção. É muito importante ter um trabalho dessa magnitude escrito para o bandoneon, porque pode ser adaptado facilmente para o acordeom. São instrumentos da mesma família. Nesse sentido, ele cumpre um papel diferente de Villa-Lobos ou Tom Jobim, que estão longe do acordeom. Podem ser adaptados, mas não de modo tão natural – explica Oscar.
Piazzolla gostava de deixar claro aos leigos que o bandoneon era um instrumento diferente do acordeom, mais associado à música festiva. Ironicamente, muitos são os acordeonistas responsáveis por manter viva a herança musical de Piazzolla. O mais conhecido é o francês Richard Galliano, que tem um álbum intitulado Piazzolla Forever.
Para Fernando Ávila, é por meio da difusão do trabalho de Galliano que inovações harmônicas de Piazzolla estão sendo assimiladas hoje:
– A música de Galliano é profundamente influenciada por Piazzolla. Então, por mais que um acordeonista não conheça o compositor argentino, conhecerá e estará ligado indiretamente ao seu trabalhão por meio de Galliano.
Oscar celebra os avanços harmônicos e melódicos de Piazzolla, mas lamenta que jovens acordeonista tentem imitá-lo de forma superficial:
– A musicalidade de Piazzola foi devolvida com muito estudo e trabalho. Hoje há jovens que espalham dissonâncias aqui e ali e acham que estão tocando como Piazzolla. Nada mais equivocado.
Para lembrar o maestro
- Começou na sexta-feira e se estende até o dia 20 uma longa programação em homenagem a Astor Piazzolla promovida pelo governo de Buenos Aires, pela fundação que leva o nome do músico e pelo Teatro Colón, da capital argentina, com curadoria de Nicolás Guerschberg e Daniel “Pipi” Piazzolla, neto do músico. São concertos diversos, praticamente todos os dias no período, com músicos de destaque da cena contemporânea e outros que chegaram a trabalhar com o maestro. Haverá transmissão online, gratuita, para todo o mundo, diretamente do palco do histórico teatro portenho no site teatrocolon.org.ar, onde também é possível encontrar detalhes de toda a programação.
- O grupo Escalandrum, liderado por Daniel “Pipi” Piazzola, está lançando o disco 100, em homenagem a Astor Piazzolla, com versões de músicas do maestro e “um solo de bandoneon inédito do grande Astor”, segundo anuncia a banda em suas redes sociais. O álbum estará disponível a partir do dia do centenário, a próxima quinta-feira, em canais de streaming. Outras informações podem ser obtidas em escalandrum.com.
- O músico e pesquisador Arthur de Faria, que assina artigo sobre Piazzolla em GZH, fez uma playlist “com quase tudo o que Piazzolla compôs que está disponível no Spotify”, relata. As músicas selecionadas são a versão preferida – de Arthur, que explica: “Sim, eu reescutei, por meses, quase cem discos para fazer essa lista”. Ouça em gzh.rs/Astor100.
- Entre os novos discos e as novas músicas que o homenageiam no Brasil está YbY Vol. 1, álbum lançado neste mês pelo trio formado pelo acordeonista Bebê Kramer, o violonista Paulinho Fagundes e o violinista Vagner Cunha. São sete faixas em um conjunto que evoca a ancestralidade dos sons característicos do sul do Brasil, entre as quais está uma versão de Oblivion, de Piazzolla.
- A dica de filme sobre o maestro é Piazzolla – Os Anos do Tubarão, cinebiografia documental dirigida pelo alemão Daniel Rosenfeld que fez carreira em festivais entre 2018 e 2019 e hoje está disponível no HBO Go. O filme contém diversas imagens da vida particular do músico, vídeos de apresentações clássicas de Piazzolla junto ao seu lendário quinteto e ainda registros de viagens ao Rio de Janeiro, onde gravou com Tom Jobim para o programa Chico & Caetano (há vídeos no YouTube com essas gravações).