Julio Cortázar (1914 - 1984) foi um dos mais talentosos escritores não apenas da América Latina, mas do mundo. Essa é uma afirmação que encontrará pouca objeção em qualquer interlocutor, e, portanto, é um pouco inútil fazê-la. Ao contrário, um dos elementos mais interessantes para abordar a obra de Cortázar não é a assombrosa elegância de sua prosa ou o implacável rigor estrutural de seus contos e romances, mas o trabalho árduo que ele, como escritor, empregou para refinar a ambos.
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Cortázar nasceu na Bélgica em 26 de agosto de 1914 - seu pai era um funcionário da embaixada argentina no país. Seu local de nascimento, contudo, é uma circunstância que em nada interfere em sua classificação como um "autor argentino". Sua família retornou à Argentina quando o pequeno Julio contava quatro anos, e sua obra está impregnada de um espírito romântico alimentado desde a infância por sua criação latino-americana. Cedo o jovem começou a escrever - em uma entrevista para a Paris Review, publicada em 1984, declarou que escrevia desde os nove anos. O que diferencia Cortázar de qualquer outro jovem talento literário precoce é sua paciência exigente. Seu primeiro livro, os contos desconcertantes de Bestiário, só foi publicado em 1951, quando o autor já contava 37 anos.
Embora ele próprio se identificasse com os sonhadores e imaginativos cronópios de seu livro de 1962 Histórias de Cronópios e Famas - em oposição ao rigorismo algo maníaco destes últimos - o escritor trabalhava em sua obra com energia e seriedade. Antes de sua estreia tardia, Cortázar não trabalhou menos - pelo contrário, burilou ao longo de anos romances, contos e peças inclassificáveis que estão entre os maiores já compostos em qualquer língua. A atmosfera urbana e cosmopolita de seus livros não esconde o substrato latino-americano que está em sua origem - um universo no qual o "fantástico" encontrou lugar sem esforço por retratar uma realidade que foi gradativamente se assemelhando a ele.
Em um texto escrito para marcar os 10 anos de sua obra-prima, O Jogo da Amarelinha, em 1974, Cortázar já definia seu labiríntico experimento romanesco como o ponto de inflexão em sua trajetória pessoal. A partir dele, o autor, "emergiu de um mundo obstinadamente metafísico e estético, e sem renegá-lo entrou numa rota de participação histórica, de apoio a outras forças que buscavam e buscam a libertação da América Latina".
Depois da sua Rayuela - e de seus primeiros contatos com a Cuba revolucionária -, Cortázar expandiu sua visão do papel de um escritor, tanto para dentro como para fora. Para dentro, chegou a uma compreensão global do papel do fantástico em sua obra. A ponto de afirmar que via a realidade de tal modo fantástica que seus textos não eram nada mais do que uma forma diversa de realismo. Para fora, tornou-se um dos tipos mais bem acabados de "intelectual engajado" dos anos 1960 e 1970, com consequências diretas para o conjunto de sua obra. Embora tenha continuado produzindo contos de esmerada qualidade, seu trânsito pela narrativa longa foi afetado por sua atividade política como um porta-voz intelectual das revoluções de Cuba e da Nicarágua.
Estava ciente do delicado equilíbrio do autor entre um engajamento datado e nada literário e uma obra de qualidade estética. E teve sucesso. Suas obras ainda falam a leitores que só conhecem algumas de suas causas por livros de história.
Porque sua visão revolucionária era, ao fim, humanista.