"E quem quer todas as notas/ Ré, mi, fá, sol, lá, si, dó/ Fica sempre sem nenhuma", já dizia um dos clássicos de Tom Jobim que João Gilberto mais gostava de tocar, Samba de Uma Nota Só. Só que não é a nota musical, mas a de dinheiro, que dá o tom da disputa familiar que sucedeu a morte, há um mês, do criador da bossa nova.
Os protagonistas deste samba são os irmãos João Marcelo, 58 anos, Bebel Gilberto, 53, e Luisa Carolina, 15 (a caçula representada pela mãe, Cláudia Faissol), mais Maria do Céu, caso de longa data com quem o músico morava em seus anos finais. E eles estão se engalfinhando numa luta pelo espólio de João.
Em termos de bens, até agora é tudo bem esquálido. Não há imóveis legados, por exemplo, embora uma ou outra peça tenha seu valor histórico-financeiro, como violões dedilhados pelo baiano.
Mas há os direitos autorais que João recebia periodicamente, estimados entre R$ 12 mil e R$ 30 mil ao mês, fora uma indenização milionária que a EMI deve ao artista, ainda alvo de impasse judicial. Este é, aliás, o único ponto que une os herdeiros - todos concordam que o pai foi lesado pela gravadora.
Outra cizânia, esta não mensurável monetariamente, é pelo afeto a João Gilberto. Seus filhos e amores passados vivem duelando para saber quem mais amou e quem mais falhou com o músico.
No ano passado, o cliente mais fiel do Degrau deixou de encomendar o filé que tanto gostava do restaurante. Uma ação de despejo levou João a sair de seu apartamento na rua Carlos Góis, no Leblon.
O episódio fez o sinal amarelo acender entre amigos, que fizeram vaquinha para pagar aluguéis e condomínios e reformar o lar de João na zona sul carioca, onde nem a água funcionava direito. Nisso, o casal Caetano Veloso e Paula Lavigne cedeu um imóvel para o músico morar na Gávea, e outro em Ipanema para Maria do Céu, a ex-namorada que residia com ele.
João voltou para a rua Carlos Góis em novembro de 2018 - dívidas de R$ 270 mil, referentes ao imóvel, foram acertadas em fevereiro deste ano. Morreu no dia 6 de julho deste ano. A certidão de óbito de João Gilberto Pereira de Oliveira, 88 anos, não precisa o momento de sua morte ("hora ignorada"), mas atribui cinco causas - edema pulmonar, infarto agudo do miocárdio, obstrução intestinal, hérnia inguino-escrotal e, mais genericamente, doença.
A morte de Miúcha, sua segunda mulher e mãe de Bebel, em dezembro, o abalou. Meses depois foi a vez da irmã mais velha, Dadainha. No final de junho, morreu ainda a gata preta e branca de João.
A briga no seio familiar colaborou para seu declínio físico.
— Inicialmente, João Marcelo, Bebel Gilberto e Maria do Céu cogitaram em conjunto a possibilidade de interdição do artista — diz Gustavo Miranda, da equipe de advogados do primogênito.
Só que, com João Marcelo morando nos Estados Unidos, Bebel teria dado prosseguimento sozinha. Em novembro de 2017, a Justiça declarou João incapaz e deu à filha do meio a guarda jurídica. A partir daí, o irmão mais velho passou a acusar Bebel de querer roubar o pai e de o manter como prisioneiro.
A cantora pleiteia agora o papel de inventariante do espólio paterno. Nem ela nem sua advogada quiseram falar com repórteres, mas amigos dizem que João Marcelo tem recalque da irmã por dois motivos - ela conseguiu sucesso musical e o pai dos dois largou a mãe dele para ficar com a dela, décadas atrás.
No quiproquó, sobrou para Luisa Carolina, vítima de alienação parental, segundo Leonardo Amarante, advogado de Cláudia Faissol, que em 2004 deu a filha temporã a João (hoje, a adolescente mora com uma tia). Mesmo sendo menor de idade, ela já não recebia pensão do pai, atolado em perrengues financeiros.
— Luisa não pôde ver o pai por um ano. Poucos dias antes, foi o aniversário de 15 anos dela. Eles eram muito próximos antes de começar isso tudo — afirma Amarante.
Maria do Céu seria a responsável pelo afastamento. Ela afirma que João sempre pagou suas contas no Brasil e que a recebeu em casa quando, endividado, ele deixou de pagar o aluguel da casa dela, em 2017. O valor devido, de R$ 76 mil, foi retirado das contas de João Gilberto em abril deste ano, por meio de penhora judicial.
O advogado Roberto Algranti Filho, que a representa, diz que João morreu nos braços de sua cliente e conviveu com ela desde que se conheceram, em 1984, em Lisboa.
— Devido ao fato dos filhos de João estarem negando a relação havida entre o casal, Maria do Céu irá propor uma ação judicial, com o objetivo de declarar, por sentença, o fato público e notório de sua união estável com o artista.
Além disso, diz, Maria vai recorrer de um julgamento que não respeitou um testamento que João fez em 2003, deixando um terço de seus bens a ela. O que ocorre é que, um ano depois, nasceu uma nova herdeira, Luisa Carolina, o que invalidaria o documento.
Para complicar, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo na semana passada, João Marcelo pôs em dúvida a paternidade da irmã mais nova, dizendo que "Lulu até hoje não se representou com um teste genético para provar que é filha dele".
Agora, Faissol promete processar o produtor por danos morais. Bebel já o processa também por danos morais.
Alheia, Maria do Céu segue com sua expectativa. Seu advogado quer ganhar a ação baseado num precedente que diz que, se um testamento reserva ao menos 50% para seus filhos, ele não poderia ser invalidado. No caso, dois terços estariam reservados aos filhos.
Mas a juíza do caso diz que não há elementos suficientes para reconhecer união estável. Ainda cabe recurso.
Em 25 de julho, os advogados de Maria do Céu enviaram à 1ª Vara de Órfãos e Sucessões do Rio, onde as questões sobre a herança estão sendo resolvidas, uma amostra da intimidade dos dois nos últimos meses de vida do músico. Ela está "em posse de diversas correspondências" que chegaram à "residência do casal", na qual "permanece morando". As cartas se referem a direitos autorais do baiano.
— O patrimônio dos direitos é amazônico, nos Estados Unidos, Europa e Japão, mas tem que ser reivindicado — diz Amarante, representante de Faissol, nêmesis de Maria do Céu.
Agora é esperar pelo próximo acorde desse samba de uma nota só.
Entenda o caso:
2003
João faz um testamento deixando um terço de seus bens a Maria do Céu
2004
Nasce Luisa Carolina, da relação com Cláudia Faissol
2015
Perícia aponta em R$ 173 milhões a indenização (R$ 219 milhões atualizados) devida pela gravadora EMI
2017
Bebel obtém a curatela de João Gilberto
Abril de 2019
João Marcelo questiona a interdição e acusa a irmã de roubar o pai
Junho de 2019
Outra perícia diz que a indenização deve ser de R$ 13,5 milhões
6 de julho de 2019
Morre João, aos 88 anos. Bebel pede para se tornar inventariante; Maria do Céu tenta firmar união estável com o artista; João Marcelo põe em dúvida a paternidade de Luisa; Faissol promete processá-lo.