Meio século após a Jovem Guarda ajudar a mudar a cultura (e também alguns costumes) do país, um musical relembra suas características e a influência exercida pelo movimento. Wanderléa, ícone da época – e uma das raras mulheres entre nomes como Roberto e Erasmo Carlos –, está à frente de 60! Década de Arromba, que passa em revista o período, no Brasil e no mundo, e que esteve em cartaz em Porto Alegre em junho. Em conversa com GaúchaZH na semana das apresentações na capital gaúcha, a Ternurinha, como Wanderléa ficou conhecida, relembra momentos importantes de sua carreira e fala sobre temas candentes na atualidade, como feminismo, relação dos artistas com o público na era das redes sociais e mudanças tecnológicas na música e na cultura.
Como você define o musical 60! Década de arromba? E que diferenças sente em relação aos shows que faz normalmente, que em geral não têm uma concepção de dramaturgia?
60! Década de Arromba é um espetáculo com nível de Broadway. Representa a riqueza cultural dos anos 1960, do rock dos Beatles aos grandes momentos da MPB e da Bossa Nova, além da Jovem Guarda, claro. Trata-se de algo totalmente diferente dos espetáculos que já apresentei, por conta das marcações de cenas, por exemplo, que são coisas típicas de musical e às quais eu não estava acostumada a fazer no palco. Meus shows sempre foram criados e se desenvolveram de maneira muito intuitiva. Essa homenagem ao meu trabalho, nesse formato diferenciado, me deixou muito emocionada. Nunca havia imaginado integrar um grande musical. E o retorno tem sido muito bom. Bem que podia virar uma espécie de (O Mistério de) Irma Vap (espetáculo teatral com Marco Nanini e Ney Latorraca) e ficar muito tempo em cartaz, né? (Irma Vap se manteve 11 anos em cartaz com o mesmo elenco, um recorde registrado no Guiness Book.)
Nos musicais que contam a vida de astros da música nacional, ou de alguns períodos específicos da cultura do país, na maioria dos casos, são atores que representam os protagonistas, como no caso do espetáculo Zeca Pagodinho – O Musical, que conta a vida do sambista. Como está sendo a experiência de interpretar a si mesma?
O Frederico (Reder, diretor do musical), ficou um ano tentando me convencer a fazer o espetáculo. Eu dizia "não", "não", repetidamente. Então, o Marcos (Nauer, responsável pelo roteiro e pela pesquisa) me mostrava uma foto aqui, outra ali... Eu dizia que não achava muita graça em fazer aquilo. Porém, aos poucos fomos mexendo no formato, e foi surgindo, de certa forma, um documentário. E, ao mesmo tempo, esse grande espetáculo cênico. Acabei ajudando na criação. Fui me envolvendo aos poucos, ajudando a criar. Fizemos algo novo, que mostra coisas reais que aconteceram no Brasil e no mundo naquela época. O que faço, no palco, é ser a representante de mim mesma. Isso é estimulante.
Você surgiu na música quando o LP e a fita k7 reinavam. Como enxerga todas as transformações que se deram até o momento atual, marcado pelo consumo via streaming e pela mudança completa das relações em torno dos artistas?
Lembro de que, uma vez, tivemos uma reunião, na minha gravadora, quando nos disseram que o que planejávamos ser um LP viraria, na verdade, um CD, e que este caberia na palma da mão. Eu ri muito, não acreditei que fariam a mudança... Tudo aconteceu muito rapidamente. Fico feliz de ter participado desse processo. E ele segue acontecendo, tudo segue se transformando muito rapidamente na música. Não gosto de saudosismo, mas é preciso admitir que o ato de ouvir um disco novo mudou. Antes, era um acontecimento. Hoje, você aperta um botão e ouve um disco inteiro, em aplicativos ou via streaming. É outra relação do ouvinte com o que ele está ouvindo. Agora, neste ano, li que as fitas k7 voltaram a ser fabricadas. Achei muito engraçado. Quando vi a notícia, pensei: "Será que as pessoas ficarão saturadas de tanta modernidade?". Pode ser...
E como é a sua relação com a tecnologia?
No básico, eu me viro muito bem em casa. Acho que, com tudo o que aconteceu, temos a necessidade de nos modernizar. Na verdade, modernizar-se é algo necessário sempre.
E as redes sociais: São importantes para o artista?
O que acho é que os artistas têm as redes à disposição para se comunicar com o público, e isso é um privilégio que não tínhamos tempos atrás. Mas, com as redes sociais, surgiu um fenômeno curioso: quando os contratantes pesquisam sobre o artista, para fechar um show, vão ver quantos seguidores ele tem, achando que se trata de um parâmetro confiável para indicar a popularidade desse artista. Só que muitos desses seguidores, quando chega na hora do show, mostram que, embora sigam o artista, conhecem muito pouco sobre ele. Isso só me fez ver que nossas canções não eram e não são descartáveis, independentemente das relações virtuais que elas motivam. Ter mais ou menos seguidores do que outro artista não quer necessariamente dizer que se é mais ou menos popular, ou que se tenha uma relação mais ou menos sólida com determinado público. Falando de mim especificamente, posso dizer que minha obra me permite trabalhar o tempo inteiro, o que é um privilégio.
Hoje, Há mais oportunidades para quem está interessado em produzir. Mas, no geral, acredito que tudo o que produzimos esteja mais capenga, como se o processo não se completasse. Algumas coisas estão muito dependentes das redes sociais, onde tudo é muito dinâmico e pouco aprofundado.
WANDERLÉA
Cantora
Com as facilidades proporcionadas pelas novas tecnologias, é mais fácil gravar um disco hoje em dia. Você sente isso?
Há algum tempo tenho o meu estúdio, o que facilita muito o meu trabalho especificamente. Antes, eu já tinha um estúdio em casa. Agora, o meu marido (Lalo Califórnia), que trabalhou bastante tempo como engenheiro de som da equipe do Roberto Carlos, tem o dele, e eu gravo lá. Gosto de colocar a voz (nas músicas), no meu estúdio. Gravaremos meu novo disco no Rio de Janeiro, com uma banda de apoio de lá, mas depois colocarei a voz no meu estúdio. É uma coisa de que gosto de fazer. Aliás, adoro ficar no estúdio. Então, nesse sentido, minha relação com a gravação não mudou tanto.
Como você vê a produção cultural no país atualmente?
Sem dúvida, hoje, há mais oportunidades para quem está interessado em produzir. Mas, no geral, acredito que tudo o que produzimos esteja mais capenga, como se o processo não se completasse. Algumas coisas estão muito dependentes das redes sociais, onde tudo é muito dinâmico e pouco aprofundado. Algo que não vejo de maneira muito positiva é o fato de um artista, atualmente, lançar seu trabalho de maneira fragmentada, um single aqui, outro ali. Não gosto da ideia de lançar uma faixa, apenas. Quero é construir um trabalho inteiro, com 10, 12 faixas. Se não, fica muito fragmentado, e o trabalho do artista não parece completo.
Um espetáculo como 60! Década de Arromba deve levar a pensar na trajetória como um todo. Hoje, mais de 50 anos depois do surgimento da Jovem Guarda, como você vê o que aconteceu, e o rumo que sua carreira tomou?
Olha, nunca imaginei que a Jovem Guarda fosse marcar tanto várias gerações que surgiram depois. Quando comecei, eu era só uma jovem querendo liberdade para cantar. Sempre gostei de cantar, desde criança. Acho que era uma coisa à qual eu estava predestinada. Na época, morando no interior de Minas Gerais, havia uma situação muito diferente da que vivemos hoje. No começo, meu pai achava bonitinho o fato de eu, uma criança, ficar cantando em casa. Depois, tudo acabou mudando. E o fato de eu estar no palco agora, com mais de 70 anos, cantando com vitalidade e alegria, dá a dimensão de tudo o que aconteceu de lá para cá. Quando você cria, está no palco, fica exposta a vários tipos de situação. Mas tenho a certeza de que fiz o meu trabalho da melhor maneira possível.
Seu pai não gostava da ideia de você se tornar uma cantora?
Quando eu era criança, ele até gostava, me achava engraçadinha, pequeninha cantando. Depois, acabei batendo de frente com ele. Briguei de várias maneiras. Briguei para poder fumar, para dirigir carro, para usar saia curta, para dançar... Na verdade, eu brigava em casa para conquistar as coisas, e de alguma forma acabava compartilhando essas brigas e essas conquistas com o público, levando-as para os palcos, porque uma geração inteira tinha as mesmas brigas, identificava-se com o que apresentávamos nas músicas. Fico feliz de ter sido uma representante da abertura da cultura jovem no país.
Essa ideia de libertação esteve presente em vários momentos. Você, por exemplo, chocou o país ao fazer um ensaio nua quando estava grávida (em 1985, para a capa da revista Status)...
Fui a primeira mulher grávida a posar nua no país, bem antes da Demi Moore (que fez ensaio semelhante para a revista Vanity Fair em 1991). Lembro que minha avó, quando viu as fotos, falou: "Minha filha, coloca uma batinha, isso é feio". Aquilo foi importante. Acredito que a gravidez é a fase mais bonita da mulher.
Você também foi pioneira no uso da minissaia e do silicone.
O que importa é que minhas contestações foram verdadeiras. E lúdicas, porque apresentadas por meio de atuações artísticas, e não de discursos. Hoje o que defendo é o discurso de equilíbrio, sem diferenças entre o masculino e o feminino. Acho que nós, mulheres, devemos trazer os homens para uma relação mais próxima. Lembro que meus pais deixavam os filhos homens brincar na rua, enquanto as meninas tinham de fazer bolo. Que bom que isso mudou.
Eu brigava para conquistar as coisas, e compartilhava isso com o público. Uma geração inteira se identificava. Fico feliz de ter sido uma representante da abertura da cultura jovem no país.
WANDERLÉA
Cantora
Que diferenças você enxerga entre a juventude da sua época e a juventude de hoje?
Hoje, os jovens são mais bem informados e autossuficientes. Mas acredito na juventude, sempre. Mesmo que o momento atual seja difícil. No meu tempo, tínhamos mais condições de estar na rua; hoje, a violência é muito maior, o direito de ir e vir está cerceado. É necessário ter paciência em todas as fases da vida, mas especialmente nessa, em que a contestação é sempre maior. As gerações vão e voltam, as ansiedades pessoais vão e vêm em todas as épocas. Hoje, para conviver em sociedade e manter contato com as outras gerações, é preciso estar aberto, mais do que antigamente. Há menos tolerância com a discriminação, em todos os sentidos e em todas as formas. É preciso primar pela aceitação do outro, independentemente de como ele seja. Sexualmente falando, inclusive.
Como é a sua relação, hoje, com Roberto e Erasmo Carlos?
Ótima. Erasmo viu duas vezes esse musical. Chorou como criança (risos). Ele fez uma música para mim, Menina dos Olhos, que deve estar no meu próximo disco. Quanto ao Roberto, fiz show no cruzeiro Emoções, em fevereiro. No ano passado, no meu aniversário, ele me ligou e rimos muito, porque lembramos da Jovem Guarda. Ele disse que eu estava ótima, cada vez melhor. E perguntou qual a água que eu bebia para estar assim (risos).
Artistas consagrados costumam receber muitas canções, inclusive de artistas anônimos. Como é esse processo para você? Você consegue acompanhar os jovens artistas?
Esse novo disco estou produzindo, pela Deckdisc, que é um dos poucos selos que resistem. Já recebi material, além do Erasmo, da Marina Lima, do Djavan e do Guilherme Arantes. Também tenho recebido material de novos compositores. Em casa, ouço de tudo, só não tenho muito tempo para marcar os nomes, como fazia no tempo que era menina (risos). Tem coisas boas entre os novos artistas, sim, com frequência recebo coisas bem boas.
Em sua autobiografia (Wanderléa – Foi Assim, lançada em 2017), você fala de vários temas polêmicos, inclusive de uma situação com Erasmo Carlos, que, nos anos 1970, teria agido de maneira inoportuna com você (Wanderléa não define o episódio como assédio). Te fez bem ter falado disso ou você se arrepende de algo?
Não me arrependo de nada. Fiquei satisfeita, fiquei muito feliz com a repercussão que o livro teve, inclusive fora do Brasil.