Artista acostumado a apresentar pontes e a fazer misturas entre gêneros, ritmos e referências em seu trabalho, Arthur de Faria se tornou, com a formação de seu novo grupo, a Orkestra do Kaos, em 2016, ele próprio uma ponte entre a sua geração (e seus interesses por ritmos ancestrais da latinidade, como o candombe e a milonga) e a nova leva de músicos do Rio Grande do Sul. A Orkestra lançou um primeiro disco em agosto do ano passado e, menos de um ano depois, apresenta outro trabalho, A Vida Agitada da Superfície, disponível nas plataformas YouTube, Spotify, Deezer e iTunes.
Orkestra do Kaos é uma banda com formação clássica de grupo de rock: dois guitarristas (Erick Endres, que tem trabalho solo e toca com a Comunidade Nin-Jitsu, e Lorenzo Flach, da Tópaz e de outros projetos), um baixista (Bruno Vargas, da Quarto Sensorial) e um baterista (Lucas Kinoshita). “Todos com idade para ser meus filhos”, brinca Arthur, 49 anos, além, é claro, de Maria Antônia de Faria, que é mesmo filha dele, e divide os vocais com o pai. Mas o músico deixa claro que a curtição do projeto desde o início foi usar essa formação e o entusiasmo juvenil e aberto de seus integrantes para passear entre estilos, o que em A Vida Agitada da Superfície se traduz em um quase-samba (Doeu), uma cançoneta do norte da Itália (Questo Legno), uma milonga (Milonga da Casa Tomada) e o candombe Portunhol, parceria com Omar Giammarco que faz da mistura entre português e espanhol uma carta de intenções, nos versos “T(r)oca tu boca / Lo que mi lengua toca / Impura mistura /La lengua no oficial.
— Sempre acreditei muito em derrubar fronteiras. Tenho amigos em Buenos Aires, e todos ficam sempre impressionados em como o Brasil se isola e se deixa acreditar nesse mito da animosidade com os vizinhos. O Brasil se acha, tem uma postura imperialista, e essa não é a minha formação, para mim sempre foi tudo uma mesma pátria — explica o compositor e jornalista.
Maria Antônia, filha e parceira nos vocais, foi uma adição posterior à formação do grupo.
— Ela canta desde muito cedo, mas na época do Arthur de Faria & Seu Conjunto, com músicos bem mais velhos que eram praticamente tios dela, não se sentia à vontade. Agora ela topou, entrou e foi superbem. Rolou uma grande interação com a gurizada. Tem sido uma experiência legal, e quando a gente está trabalhando, no estúdio ou no palco, não é uma relação de pai e filha, é de coleguismo.
Repertório transita entre gêneros latinos
A Vida Agitada da Superfície reúne oito faixas. Sete são de autoria de Arthur, solo ou com parcerias – tanto de outros compositores como Ommar Gianmarco quanto de escritores cujos textos Arthur adaptou. É o caso de Satirália, poema de Haroldo de Campos publicado originalmente em Crisamtempo: no Espaço Curvo Nasce Um (1998). No livro, o poema trazia o subtítulo Roque à maneira dos Titãs, e é, de fato, a faixa que mais poderia ser confundida com um rock, com vocal gritado, guitarras agudas e uma bateria que marca o ritmo com a cadência de uma locomotiva. Arthur também musicou Sexo na Cabeça, crônica de Luis Fernando Verissimo, compilada no livro de mesmo nome, e um trecho do Pinóquio, de Carlo Collodi, transformado em Questo Legno, canção na trilha do recente documentário Para Ficar na História, do cineasta Boca Migotto.
— Extrair a musicalidade de textos que não foram compostos para ser música é uma das coisas que mais gosto de fazer na vida. E dá muito trabalho, porque acho importante não alterar o sentido. Não dá para pegar atalhos. É a melodia que tem que se encaixar, dar uma volta a mais, se preciso — diz ele.
Completa o repertório uma versão de Desenchufado, de Vitor Ramil, do álbum Longes (2004), um brado contra a anomia: “Eu não acredito/ Tô desencantado/ Tô sem compromisso/ Tô criando caso”. Arthur e a Orkestra dão à sua interpretação um tom ainda mais sombrio que o da original.
— A gravação do Vitor é a de alguém desolado. A gente puxou mais para o lado do desespero que estamos vendo hoje — resume Arthur.
A Vida Agitada da Superfície
Arthur de Faria & Orkestra do Kaos
YBmusic, 8 faixas. Disponível nas plataformas digitais