Quem vê um senhor metido em um sóbrio terno negro receber a Calhandra de Ouro, prêmio máximo da Califórnia da Canção Nativa, pode até duvidar de que o festival está voltando às origens. Mas foi assim, sem bota, bombacha ou chapéu, que os primeiros vencedores receberam o troféu, em 1971. Só agora, 46 anos depois, o compositor Silvio Genro repete o feito de ganhar a maior competição da música regional gaúcha sem ostentar a pilcha.
Com a continuidade rompida depois de 2009, a Califórnia tem tentado recuperar sua grandeza e prestígio desde 2013, quando o CTG Sinuelo do Pago conseguiu realizar uma nova edição do festival. O evento foi repetido nos dois anos seguintes, embora sem competição no último deles. Em 2017, no entanto, a mostra musical voltou para valer em sua 40ª montagem, com um inédito projeto de captação via lei de incentivo estadual, totalizando um orçamento de R$ 420 mil.
— Ter esse recurso para pagar as ajudas de custo adiantadas, e com um bom valor, foi fundamental para estimular os artistas a concorrer — afirma Ricardo Peró, diretor de Cultura de Uruguaiana e um dos envolvidos na organização.
Para concorrer à Calhandra de Ouro, prêmio acompanhado de R$ 5 mil, e disputar em categorias que rendem de R$ 1 mil a R$ 2 mil, estavam artistas do quilate de Mário Barbará, Luiz Carlos Borges, Shana Müller e Vinícius Brum.
Silvio Genro foi grande campeão, com a composição Um Homem, um Cavalo e um Cachorro, interpretada pelos cantores Luiz Fernando Baldez e Ricardo Tubino. A letra parte de um simples aceno a um homem do campo para refletir sobre os valores da vida urbana: Num mundo que valoriza/ mais os números que os nomes/ Que valor tem um cavalo,/ um cachorro a acompanhá-lo/ e um homem que nem conheço?.
Silvio Genro compareceu à grande final do festival, no domingo, no Teatro Rosalina Pandolfo, em Uruguaiana, de terno e gravata como uma “sutil provocação” ao fato de que sua música não foi classificada na linha campeira, que se vincula aos costumes do campo. Em vez disso, os jurados a classificaram na linha de Manifestação Rio-Grandense, sobre aspectos culturais e geográficos do Estado.
— Queria concorrer na campeira, pois acho que é nessa linha que se encaixa a música. Como me deixaram fora do campo, vim de terno. Na verdade, lembrei dos Marupiaras, que ganharam a primeira Califórnia, em 1971. Eles entraram no palco de smoking. Como eu não tinha smoking em casa, vim de terno mesmo — brinca Genro, que já havia levantado uma Calhandra em 1995, por Querência, parceria com Getúlio Rodrigues.
Para definir os vencedores, houve eliminatórias na sexta e no sábado. Além de ter 20 canções inscritas, o evento contou com shows de Mano Lima, Luiz Carlos Borges, Mário Barbará e Chico Saratt, Mauro Moraes e João de Almeida Neto.
Para Genro, o festival teve sua retomada definitiva, embora precise de ajustes:
— Creio que é necessário aumentar a interação com o público da cidade, que vi muito pouco aqui nos primeiros dias. Além disso, é preciso se aproximar mais do público jovem, se não o evento vai morrer na medida em que as gerações avançam.
Mudanças para 2018
A organização da Califórnia celebrou a qualidade das canções apresentadas neste ano. Cada inscrito com uma canção contemplada ganhava R$ 6 mil como ajuda de custo — em 2014, última edição competitiva, a recompensa se restringia a quase metade do valor.
— Pensamos em uma ajuda de custo maior que a média dos festivais, justamente para atrair bons compositores. Estamos muito satisfeitos porque isso funcionou. Artistas conhecidos, que poderiam dar um show próprio, vieram para a competição, defender suas músicas —avalia Ivoné Emílio Colpo, patrão do CTG Sinuelo do Pago e integrante da organização do festival.
A presença do público foi razoável, com cerca de 900 pessoas por noite, em um teatro com capacidade para 1,3 mil. Um dos motivos apontados para a lotação não ter sido completa foi o preço dos ingressos, que custavam entre R$ 60 e R$ 100 por noite. A redução do valor dos bilhetes é a primeira mudança que Ivoné pretende implementar para o próximo ano.
— É um preço alto para os padrões de Uruguaiana. Não sabemos de que modo, mas vamos reduzir esse valor — promete Ivoné.
Mais uma novidade está prevista para envolver comunidade e novas gerações na próxima edição. Segundo Ivoné, a organização está trabalhando para oferecer uma modalidade de votação pela internet — neste ano, o festival já contou com transmissão por streaming na rede. Algo semelhante foi feito na 32ª edição do Enart deste ano, quando o público pode escolher, via aplicativo, o grupo mais popular.
Aumentar a interação com os países vizinhos também está na lista das prioridades. Para isso, o festival deve criar mais uma linha de composições, além das já previstas campeira, manifestação rio-grandense e livre. Será a linha “gaucha”, voltada para argentinos e uruguaios que queiram inscrever composições em ritmos tradicionais de seus regionalismos.
— Pouca gente percebeu, mas ampliamos esse diálogo neste ano. Foi a primeira vez que permitimos a inscrição de chamamés. Anteriormente, só eram permitidos os ritmos tradicionais do sul do Brasil, como milonga, valsa e vaneira.
O local
Nos anos 1980, depois do sucesso das edições anteriores, a Califórnia saiu do prédio do antigo Cine Pampa para ser tornar um evento de dimensões maiores. Foi então transferida para o Clube Agrícola Pastoril, com acampamento para milhares de pessoas. Agora, o festival está de volta ao velho cinema, convertido no Teatro Rosalina Pandolfo, com capacidade para 1,3 mil pessoas.
O grande acampamento é motivo de saudade para muitos veteranos da canção gaúcha, mas não deve ser oferecido novamente. A grande concentração de acampados foi tema da música Pelas Cidades de Lona, de 1991, na qual Silvio Genro brincava com o fato de que, apesar do público ser numeroso, nem todos prestavam atenção ao que ocorria no palco.
— Você via 4 mil pessoas acampadas, mas aí começava o show e na arquibancada só tinha 300 — lembra Genro.
Esse tempo não deve voltar, conforme Ivoné Emílio Colpo:
— Hoje os jovens não têm mais o mesmo gosto por acampar. Naquela época, era o que havia para fazer.
Chico Alves, autor de Recuerdos da 28, em parceria com o pai Knelmo, e de outros êxitos do festival, avalia que o retorno ao local de origem tende a qualificar a seleção das músicas premiadas.
— As pessoas ouvem com mais atenção no teatro. Havia noites da Califórnia em que entre 10 a 15 mil pessoas estavam no parque de eventos. É algo muito dispersivo — avalia Chico Alves, que participou do júri desta edição.
Premiação
Calhandra de Ouro:
Um Homem, um Cavalo e um Cachorro
Letra e música de Silvio Genro
Interpretação de Luiz Fernando Baldez e Ricardo Tubino
Linha Campeira:
Sobra de Baile
Letra de Anomar Danubio Vieira, e música de Juliano Gomes
Interpretação de Joca Martins
Linha de Manifestação Rio-Grandense:
Um Homem, um Cavalo e um Cachorro
Letra e música de Silvio Genro
Interpretação de Luiz Fernando Baldez e Ricardo Tubino
Linha Livre:
Aprendendo a morrer
Letra de Mauro Ferreira, e música de Luiz Carlos Borges
Interpretação de Luiz Carlos Borges
Melhor Intérprete:
Shana Müller, por Amor em Trovas de Lua
Melhor Letra:
Aprendendo a Morrer, de Mauro Ferreira
Melhor Melodia:
Amor em Trovas de Lua, de Sergio Rojas
Melhor Instrumentista:
Guilherme Goulart (Acordeom), por Rumo Íntimo
Melhor Arranjo:
Tatuagens, por Lenin Nuñez