O The Who entrou no palco sem pompa na noite de terça-feira. Após alguns minutos com uma mensagem no telão "Mantenha Calma, Aí Vem o The Who", as luzes do palco montado no gramado do Beira-Rio se acenderam às 21h23min, e lá estavam Roger Daltrey, Pete Townshend e os demais integrantes da banda ocupando seus lugares e plugando instrumentos. Vestiam-se muito sóbrios, ainda mais se comparados com o Def Leppard que havia aberto o programa da noite mais cedo (com direito ao guitarrista Phil Collen sem camisa e besuntado de óleo). Talvez porque os dois remanescentes originais do The Who tenham consciência de que, embora o estilo visual tenha sido um componente importante da identidade do grupo em suas origens, o verdadeiro diferencial a ser oferecido em um show da banda após meio século de atividade são as músicas, petardos que não decepcionaram os apreciadores do que o rock tem de mais clássico.
A pergunta é se ainda há tantos desses apreciadores. Embora não se possa falar de estádio vazio, o público visivelmente não chegava a 20 mil pessoas. O Def Leppard, que começou seu show com 15 minutos de antecedência do horário marcado, teve de enfrentar uma audiência ainda menor, porque vários espectadores foram chegando durante a apresentação da abertura, o que talvez explique a recepção meio fria da platéia a clássicos do bom e velho rock farofa como Let it Go, Love Bites e Rocket.
Com o The Who, contudo, o público deu mostras de conexão intensa, cantando junto e vibrando de modo compacto. Não foi à toa que o show da banda no Rock in Rio foi um dos destaques do festival. O repertório, embora não seguisse uma exata linha cronológica, claramente fora preparado com uma linha discernível. O show começou com uma série de pedradas sonoras em sequência dedicada a acelerar a conexão da plateia com a banda: I Can't Explain, The Seeker, Who Are You (a que todo mundo conhece como a da abertura do seriado CSI). Só após esse belo cartão de visita Pete Townshend tomou o microfone e fez uma saudação a Porto Alegre (vale aqui menção honrosa a uma das pronúncias de gringo mais engraçadas já aplicadas ao nome da cidade, algo como "Porroto Alégore"):
– Desculpe não falar em português. Estamos muito felizes de estar aqui. Lamento apenas que tenha demorado tanto. – disse.
Na sequência, outro bloco de três músicas, pérolas do início da carreira da banda, nos anos 1960, The Kids are Allright, I Can See For Miles e My Generation. Townshend, o motor criativo da banda, e por isso mesmo o que mais falava com a plateia, brincou ao anunciar I Can See for Miles de que ninguém ali deveria ter nascido ainda quando a banda lançou a canção. Foi contestado por um dos espectadores junto ao palco e brincou, fingindo-se chocado: "Oh, Deus, um velho!"
Who's Next, um dos álbuns mais elogiados da banda, lançado em 1971, foi contemplado a seguir, com Behind Blue Eyes e Bargain – antes de anunciar a primeira, Roger Daltrey brincou, enquanto ajustava a alça da guitarra:
– Não, esta não é uma canção do Limp Bizkit – numa referência ao fato de muitos ouvintes da geração mais nova terem conhecido a música na versão que a banda americana de Nu-Metal gravou em 2003.
Quando o grupo passou a Join Together, o clima já era tão apoteótico, com todo mundo "junto com a banda", como pede a canção", que um desavisado poderia encarar aquele como o encerramento do show. Townshend anunciou então um novo bloco de canções, desta vez do álbum Quadrophenia. Na última delas, outro momento de delírio ao som de Love, Reign O'er Me – Daltrey, que nas primeiras músicas, como Who Are You, ainda estava com a voz rascante e parecia que teria problemas para acompanhar o ritmo, recuperou-se brilhantemente neste momento do espetáculo, dando, aos 73 anos, mostras de exuberância vocal.
A essa altura, mais de uma hora de show havia se passado, e como se posicionada para separar as duas metades da apresentação, Eminence Front, canção da fase anos 1980 do The Who, deu as caras, cantada por Townshend e com maior participação dos três tecladistas John Corey, Loren Gold e Frank Simes. Na origem um quarteto, The Who se apresenta hoje com o dobro de integrantes. Além de Daltrey e Townshend e do trio de tecladistas (que também auxiliam Daltrey como backing vocals em algumas passagens hoje mais difíceis para o cantor), compõem o grupo o também guitarrista Simon Townshend, irmão de Pete, o baixista Jon Button e o intenso Zak Starkey, filho do beatle Ringo Starr, que segura com competência na bateria a responsabilidade de reproduzir com dignidade a sonoridade característica dada por Keith Moon ao grupo.
A volta de Daltrey coincide com o início do bloco de canções dedicado à ópera-rock Tommy – uma obra da qual o vocalista se apropriou com tanta gana que chegou a estrelar o filme adaptado da obra em 1975 por Ken Russell. Amazing Journey, em um arranjo mais rápido, abre a série, seguida por Pinball Wizard, que reacende o público e See Me, Feel Me.
Ainda havia espaço para mais pedradas, e havia fãs literalmente às lágrimas enquanto a banda retornada ao clássico Who's Next para encerrar o repertório com Baba O'Riley e Won't Get Fooled Again – aos 72 anos, Townshend provou nesta última canção que ainda consegue dar a característica "deslizada de joelhos" com que sempre costumou encerrar o número ao vivo.
Enquanto todos os demais integrantes fingiam deixar o palco, apenas Roger continuou, como se não tivesse percebido que o show havia acabado. O vocalista elogiou a audiência e comentou que aquela deveria ser a última vez que o público brasileiro os veria – o show encerrou a passagem do grupo pelo país, e eles já anunciaram que provavelmente encerrarão as atividades após a atual turnê.
Com o retorno dos demais, foi a vez do bis, com 5:15, do disco Quadrophenia, e a rápida Substitute, na qual Daltrey já dava mostras evidentes de cansaço depois das mais de duas horas de show, compensadas pelo vigor com que levou a apresentação até o fim digno. Ambos com mais de 70, Daltrey e Townshend se provaram velhos mestres ministrando suas últimas aulas de rock'n'roll.