Parece até brincadeira: o bruxo que tira música de literalmente qualquer coisa não gravava disco com seu grupo há 15 anos. Segundo Hermeto Pascoal, essa abstinência não foi proposital: neste período, o genial músico lançou trabalhos solo, em duo, trio e com orquestra, participou de projetos de outros artistas – além de constantemente apresentar-se ao vivo com seu quinteto. A boa notícia é que essa dívida foi saldada agora com juros e correção monetária graças a No Mundo dos Sons, álbum duplo que Hermeto acaba de editar em CD e nas plataformas digitais. São 18 temas de pegada jazzística ecoando ritmos brasileiros, compostos e arranjados pelo multi-instrumentista de 81 anos, responsável também pela direção musical.
– Minha música não é comercial, não é como vender banana ou sabonete. Eu não tenho pressa para gravar. Minha vida toda é fazer shows. O público sabe que, quando eu toco ao vivo, o som é diferente do disco. E aonde o velho vai, meu filho, a meninada se arrepia! – diz o bem-humorado artista em entrevista por telefone a Zero Hora.
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Gravado em fevereiro no estúdio Gargolândia, em São Paulo, No Mundo dos Sons reúne Hermeto e a formação integrada pelo baixista Itiberê Zwarg – no grupo desde 1977 –, o baterista Ajurinã Zwarg (filho de Itiberê), o pianista André Marques, Jota P. no comando dos instrumentos de sopro e o percussionista Fábio Pascoal, filho do compositor. Hermeto toca de tudo no disco: apitos, escaletas, berrantes, teclados, chaleiras, colheres e pianos preparados.
– Tenho uma quantidade assustadora de músicas, são quase 9 mil composições no papel. Mas não confunda quantidade com qualidade, viu? Sempre me preocupo com a qualidade. Componho em qualquer lugar, viajando, no avião. Nesse disco, tem músicas de quase 30 anos. Não paro de compor, e mesmo os temas antigos eu acabo renovando – explica Hermeto.
Hermeto Pascoal ganhou título de doutor nos eua
Os nomes da maioria das faixas de No Mundo dos Sons homenageiam outros grandes músicos: Para Thad Jones, Para Miles Davis, Para Tom Jobim, Para Ron Carter, Viva Piazzolla!, Viva Edu Lobo!, Forró da Gota para Sivuca, Um Abraço Chick Corea – que Hermeto chama de "Chiquinho Corrêia". A referência não fica apenas no título: as composições sempre evocam em algum momento o estilo musical de cada um dos citados – no caso de Piazzolla, inclusive citando um trecho de Adiós Nonino. De acordo com o mestre alagoano, porém, esses tributos não foram planejados previamente:
– Sou um cara 100% intuitivo. Minha mente não deixa eu premeditar. Só ponho os nomes nos meus discos depois da mixagem. Quando eu estava mixando é que notei as presenças dos compositores. Não é tanto a música de cada um, mas é o jeito deles. Eu me lembro, por exemplo, quando o Edu Lobo chegava com o violão. Ele é um cara genial! A gente ficava tocando horas assim, ele com o violão, eu com a flauta. Nunca nos separamos musicalmente.
Nome consagrado mundialmente, Hermeto acredita que o respeito a músicos brasileiros como ele ainda é acanhado em seu próprio país:
– Na Argentina, me comparam com o Maradona e até os taxistas me conhecem, como se eu fosse um cara que fizesse música comercial, um Roberto Carlos. Lá fora, as pessoas me reconhecem na rua. Aqui também, mas deveria ser mais.
Por falar em projeção internacional, o "Campeão" – um de seus apelidos e também como gosta de chamar os interlocutores – recebeu em maio o título de doutor honoris causa pela New England Conservatory, em Boston, nos Estados Unidos. Bamba do improviso, o irreverente Hermeto deu um jeito de levar para casa a toga que a universidade apenas emprestou-lhe para a cerimônia – e que agora está servindo de partitura para uma música que está compondo – e também de zoar com o protocolo:
– Me deu vontade de passar a mão na bunda do mestre de cerimônias, porque estava muito chato. Passei o lado de fora da mão na bunda dele para dar a impressão de que foi por acaso. Mas dá para ver isso na internet (risos).
No Mundo dos Sons
Hermeto Pascoal & Grupo Selo Sesc, CD com 18 faixas, R$ 30.
Cotação: muito bom