Nesta segunda, Caetano Veloso, um dos maiores artistas da canção popular brasileira, completa 75 anos. Mesmo tal elogio não faz jus à sua carreira. Na lista de muita gente, é o único a rivalizar com Chico Buarque no posto de maior cancionista do último meio século, e essa condição vem amparada por atuações decisivas ao longo desse tempo: o disco ritual-manifesto tropicalista em 1968, o experimentalismo e a contracultura nos anos 1970, a transa com o pop na década seguinte, o sucesso de vendas na segunda metade dos anos 1990, somado à excepcional autobiografia Verdade Tropical, a internacionalização de sua carreira nos anos 2000 – shows nos EUA, A Foreign Sound, o cinema de Almodóvar – e inovadoras propostas de vanguarda nos trabalhos mais recentes. Isso sem contar o evidente virtuosismo na composição de canções como Cajuína, O Ciúme, O Quereres, Oração ao Tempo e tantas outras, além de uma sonoridade em geral mais estridente e um apetite maior para a polêmica do que seu "antagonista" carioca. Caetano é um intelectual brasileiro, opinando sobre questões dos mais diversos campos. Para bem e para mal, esse é o lugar que ele ocupa em nossa cultura.
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Também pelo protagonismo, pouco se debate com profundidade sua obra ou a forma como o tropicalismo conquistou tamanha centralidade na música brasileira. Caetano foi sempre um intelectivo – traço que se evidencia à luz da organicidade sensível de seu parceiro Gilberto Gil. Desde Santo Amaro, sua disposição é cosmopolita-provinciana, isto é, é provincianamente cosmopolita, crê, de maneira provinciana, ser cosmopolita, e seu gesto estético está sempre orientado por uma intervenção no debate do que seja música ou cultura. Uma boa parte de suas canções são antes argumentos, ou cartazes, ou happenings, que procuram pontuar certa percepção de mundo. Isso explica suas contradições – como alguns já destacaram, especialmente o crítico Roberto Schwarz – e o imperativo de reinvenção que age em Caetano a cada trabalho, prova inconteste de seu invejável vigor como artista, se visto de perto, mas um jugo relativamente incômodo de novidade, que o fustiga, se visto de longe.Uma segunda reflexão pouco desenvolvida é sobre como o tropicalismo dependeu do estabelecimento do mercado de canção popular para se consolidar. É relativamente nítido, por números de vendas de discos, reconhecimento na esfera intelectual etc., o quanto a MPB reinava na década de 1970 e foi destronada pelos tropicalistas na década posterior. Não exagero ao dizer que, atualmente, "tropicalismo" é quase sinônimo de "mistura", e em chave positiva de valor. Em muitos sentidos, envelhece tudo o que não seja "tropicalista" ou não se valha de componentes tropicalistas. O tropicalismo é a forma cancional brasileira que elaborou a chave agônica e gozosa para experienciar os aspectos contraditórios de nosso desenvolvimento periférico; essa chave se torna tão mais adequada quanto mais essas contradições se agravam e, ao mesmo tempo, nós aprendemos a ser melhores neste espaço particular por causa do tropicalismo. O Brasil ensina o tropicalismo, que ensina o Brasil. Embora Gil tenha sido seu idealizador, Caetano é certamente o capitão deste barco, e este é um enorme feito. Com a "brasilianização" do mundo, o tropicalismo vira resposta global às contradições do capitalismo.
Procurei escapar do elogio e da crítica estritos para emular no texto o quão interessante é a figura retorcida de Caetano em nossa música e em nossa cultura. Um gênio, sem sombra de dúvidas, mas capaz de ser, em público, bastante tolo, quando esticado para ocupar lacunas de nosso tecido cultural estranhas a ele. Criativo, inventivo, enérgico, mas escravo da juventude e da vanguarda. Ninguém entende o Brasil dos últimos 50 anos sem observar Caetano Veloso. Suas incoerências, sua luta por emancipação, sua inquietude e sua melancolia nos mimetizam como sociedade. Ainda aguardamos ansiosos os novos trabalhos deste senhor de 75 anos pra saber o que há de novo na música popular brasileira. Isso diz muito sobre Caetano Veloso. Isso diz muito sobre todos nós.
* Guto Leite é músico e professor de Literatura no Instituto de Letras da UFRGS