Foi a partir de uma provocação da namorada, a também escritora Dalva Maria Soares, que José Falero tomou consciência de um dado incômodo sobre a própria literatura: de modo geral, são poucas as personagens mulheres, e estas quase sempre ocupam papéis secundários. Embora tenha tentado esboçar algum tipo de justificativa, o escritor se deu por vencido em pouco tempo de conversa. Não havia o que retrucar, Dalva tinha razão. E é a ela que Falero dedica seu novo livro, Vera (Todavia, 304 páginas, R$ 69,90), que tem na experiência social das mulheres da periferia a sua espinha dorsal.
Há mais de uma dezena de personagens femininas, sendo a protagonista, Vera, uma empregada doméstica que rema contra a maré da desigualdade e da exclusão na Porto Alegre dos anos 1990. Tem o sonho de ser chacrete, mas, em vez de atravessar o palco do Velho Guerreiro em coreografias ensaiadas, de segunda a sexta ela sai de sua casa na Lomba do Pinheiro — cujo terreno com outras quatro residências tem um único sanitário para as nove pessoas que ali vivem — e atravessa a cidade para cuidar de uma família rica do bairro Menino Deus, em um apartamento com quatro banheiros e três habitantes.
No ponto de partida, no caminho e no destino final, Vera tem o machismo estrutural como companhia inconveniente. Não é exclusividade dela: as demais mulheres da trama também têm suas trajetórias atravessadas pelos diferentes níveis da violência de gênero. Mas, tal qual Vera, todas encontram nas pequenas vitórias do cotidiano, no abraço dos filhos que criam sozinhas e, muitas das vezes, umas nas outras, a força necessária para não sucumbir à dura realidade que insiste em também as endurecer.
Apesar do escopo feminino, Falero não economiza em aprofundar também os personagens do gênero oposto. Aliás, dos homens às mulheres, das crianças aos adultos, o autor consegue construir tipos complexos, alguns deles dignos de um romance só para si. Mas ao tratar dos homens, expõe com crueza as facetas mais repugnantes do machismo e da masculinidade tóxica — da qual não escapa ninguém, nem mesmo aqueles que tentam.
— Tenho medo que as pessoas achem que, por estar falando sobre isso, eu seja uma exceção. Não sou exceção. Inclusive, a ideia que tento explorar é a de que não há exceção. "Ah, mas o meu marido é diferente, o meu irmão é um cara legal". Não! Nenhum homem escapa dessa modelagem. A nossa subjetividade enquanto homens é moldada a partir dela — afirma Falero.
Diferentemente do que ocorreu nas obras anteriores, entre elas o aclamado romance Os Supridores, finalista do Prêmio Jabuti em 2021, escrever Vera colocou Falero em posição de desconforto.
Isso porque, ao narrar as distintas violências que os homens são capazes de cometer contra as mulheres, das conversas sexistas nas rodas de amigos ao escárnio da agressão física, o autor enxergou-se pela primeira vez no lugar de opressor. Afinal, não podia ignorar a própria participação no problema que agora criticava.
— Vera foi a coisa mais difícil que eu já escrevi, porque cada página me gerava uma crise diferente. Tudo que eu havia escrito até então era apontando o dedo para quem me oprimia, fosse por questões de classe ou por questões de raça. Quando o assunto é gênero, olha que loucura: eu viro o opressor. E, à medida que fui escrevendo, fui me dando conta do quanto sou parecido com alguns personagens. Não foi um processo fácil, mas me levou a pensar, refletir e aprofundar uma série de temas sobre os quais eu ficava só na superfície — relata o autor.
Os desconfortos não devem cessar tão cedo. Vera é o primeiro de três volumes que serão lançados separadamente, mas estarão unidos pelo tema da masculinidade tóxica. Os próximos dois títulos seguirão acompanhando personagens apresentados ao público neste primeiro, mas aprofundarão outras figuras femininas do universo literário criado por Falero. Cada livro, portanto, terá o nome de uma mulher. A ideia inicial era unificar as três obras em um único romance, de fôlego, mas o livro teria cerca de mil páginas, o que inviabilizou a execução, conforme o autor.
Assim, quem quiser iniciar a leitura da saga pode comparecer ao Centro Cultural da UFRGS (Rua Engenheiro Luiz Englert, 333) nesta terça (12), às 19h, quando Falero faz o lançamento do livro em Porto Alegre. No sábado (16), às 17h30min, o autor também estará na Feira do Livro de Porto Alegre, participando de bate-papo com Marcelino Freire e Jeferson Tenório, com mediação de Nanni Rios. Às 19h, autografa Vera na Praça de Autógrafos.
Depois, o escritor parte para uma sequência de lançamentos em Florianópolis, São Paulo e Belo Horizonte, ávido por descobrir como a obra impactará os leitores.
— As pessoas tendem a pensar que quando o autor lança um livro, ele está automaticamente capacitado a falar da melhor maneira sobre ele. Comigo não é assim. Eu vou aprendendo sobre o trabalho com o passar do tempo, na conversa com as pessoas. O que os leitores me trazem, as questões que eles levantam, é o que me faz entender a obra. Com Vera, tenho andado especialmente ansioso por essas trocas — confessa.