Em 2016, em artigo veiculado na Zero Hora, o poeta, professor e crítico literário Ronald Augusto lançou um questionamento público à Câmara Rio-Grandense do Livro: "Quantos e quais escritores negros farão parte da 62ª Feira do Livro de Porto Alegre?". A pergunta remontava a uma cobrança coletiva, reiterada por dezenas de outros autores negros, para que o maior evento literário do Rio Grande do Sul fosse grandioso também em diversidade étnica.
Oito anos se passaram até que, na edição que marca as sete décadas da Feira do Livro de Porto Alegre, um passo importante fosse dado: pela primeira vez, o evento conta com uma curadoria dedicada à inclusão e à valorização da literatura produzida por pessoas negras.
O posto de curadora foi ocupado pela poeta e musicista Lilian Rocha. Reconhecida pela atuação em diferentes coletivos negros da cidade, a escritora também endossava a cobrança por uma maior presença negra no evento. Agora, celebra fazer parte de um momento que considera histórico.
— São 70 anos da nossa Feira do Livro e somente agora isso está acontecendo. O primeiro patrono negro, Jeferson Tenório, foi eleito somente em 2020. Ou seja, são conquistas que se dão a passos lentos, fruto de muitos anos de reivindicações, mas que eu vejo como fundamentais — analisa.
— Esta curadoria é um passo importante da Câmara Rio-Grandense do Livro, que percebeu a importância de pensar sobre quais pessoas estão ocupando os espaços de destaque. É algo que está possibilitando trazer pessoas que já têm uma trajetória significativa no meio literário e, ao mesmo tempo, novos escritores que estão surgindo e que talvez não tivessem espaço no evento — detalha Lilian.
A programação está espalhada pelos 20 dias da Feira, que termina no dia 20 de novembro, e inclui escritores nacionais como a cearense Jarid Arraes, o paulista Cuti e a baiana Bela Gil; gaúchos que conquistaram projeção no país, como Jeferson Tenório, José Falero, Eliane Marques e Taiasmin Ohnmacht; e autores locais que despontam como promessas, a exemplo de Nathallia Protázio, Ana dos Santos e Duan Kissonde.
Lilian Rocha diz que houve especial preocupação em valorizar escritores gaúchos que têm obras literárias consistentes e exímias, mas que ainda não foram notados pelas grandes editoras — e, não raramente, também têm pouco reconhecimento no Estado. Para ela, a Feira do Livro deve ser uma espécie de vitrine para os talentos locais, oportunizando que tenham seus trabalhos difundidos.
— Conheço a luta que é para os escritores negros estarem no mercado e terem seus trabalhos reconhecidos. Muitas vezes, o reconhecimento vem primeiro de fora e somente depois, de dentro do Estado. A gente precisa começar a perceber a qualidade literária que temos no Rio Grande do Sul. Há cada vez mais autores afro-gaúchos aparecendo para o país, mas tantos outros permanecem à sombra — reflete Lilian.
Integrante do Coletivo de Escritores Negros, organização que reúne representantes da literatura afro-gaúcha, a escritora Isabete Fagundes Amaral celebra a curadoria voltada à produção literária negra.
Para ela, que participará de três sessões de autógrafos nesta edição da Feira do Livro (nos dias 5, às 18h; 9, às 15h; e 16, às 14h) a iniciativa, embora tardia, ensaia uma reparação para a invisibilização histórica a qual os escritores negros gaúchos foram submetidos ao longo das últimas décadas, em razão das poucas oportunidades de participarem do evento.
A autora destaca, ainda, o impacto que ampliar a presença de autores negros pode trazer para o campo literário do Rio Grande do Sul:
— Quando um jovem negro vai à Praça da Alfândega e vê uma mesa com 15 integrantes do Coletivo de Escritores Negros autografando, ele entende que aquilo também pode ser uma possibilidade para ele. Isso tem um impacto direto no modo de pensar das crianças pretas, e por isso é tão importante que haja essa representatividade. É uma iniciativa que pode fazer com que, daqui a alguns anos, nós tenhamos muito mais escritores negros na Feira do Livro.
Ronald Augusto, que há oito anos cobrou a Câmara Rio-Grandense do Livro por maior diversidade étnica no evento, também vê a iniciativa como tardia, mas pondera que "os problemas ligados ao racismo, em geral, são solucionados a partir de pequenas conquistas, que se dão lentamente".
Ainda segundo o autor, apesar de atrasada, a ação vai efetivamente enegrecer a programação da Feira do Livro, o que considera uma vitória. Ele próprio estará participando de um bate-papo na próxima sexta-feira (8), às 15h30min, ao lado de Elizandra Souza, Duan Kissonde e Cuti, referência na poesia e um dos criadores da coletânea Cadernos Negros. A atividade integra o Ciclo Preto Soul, que promoverá uma série de encontros e atividades culturais ao longo do dia.
Para o futuro, Ronald Augusto espera que a preocupação com a diversidade permaneça entre a organização da Feira do Livro, mas deseja ver escritores negros convocados ao evento para abordar também temas dissociados da questão racial, assim como ocorre com os brancos.
— É preciso naturalizar a presença de pessoas negras no universo da literatura, e acho que a curadoria de alguma forma contribui para isso. É um primeiro passo para que, no futuro, nós sejamos convidados a falar de literatura de modo geral, sem ficarmos presos à nossa negritude. Porque pessoas negras que escrevem têm interesses diferentes, linguagens diferentes e concepções diferentes sobre a literatura. O próximo passo é entender essa questão — sugere o escritor.
Confira alguns destaques da programação:
6 de novembro
- Às 17h30, no Teatro Carlos Urbim, Bela Gil conversa com Elaine Maritza sobre o livro Quem vai fazer essa comida? Mulheres, trabalho doméstico e alimentação saudável.
7 de novembro
- Às 18h, na sala O Retrato do Espaço Força e Luz, as escritoras Eliane Marques, Taiasmin Ohnmacht e Ana dos Santos conversam sobre escrevivência e ancestralidade nas obras de escritoras negras gaúchas.
8 de novembro
- Às 10h, no Auditório Barbosa Lessa do Espaço Força e Luz, painel sobre mitologia africana com Mãe Paty e Babá Dyba, com mediação de Dilmair Monte.
- Às 15h30, no Auditório Barbosa Lessa do Espaço Força e Luz, o poeta, ficcionista e dramaturgo Cuti conversa com Elizandra Souza, Ronald Augusto e Duan Kissonde sobre a negritude na poesia brasileira contemporânea.
- Às 17h30, no Teatro Carlos Urbim, edição do Sopapo Poético, tradicional sarau negro que já soma 12 anos de realização.
9 de novembro
- Às 17h30, na Sala Noé de Melo Freitas do Espaço Força e Luz, a escritora paulista Lilia Guerra conversa com Winnie Bueno e Nathallia Protázio sobre literatura e antirracismo.
14 de novembro
- Às 14h, no Auditório Barbosa Lessa do Espaço Força e Luz, os rappers Negra Jaque e DKG Dekilograma ministram a oficina Linhas de Cura Através da Palavra.
16 de novembro
- Às 14h, no Auditório Barbosa Lessa do Espaço Força e Luz, o Coletivo de Escritores Negros autografa Meu Corpo Negro: Territórios, coletânea de contos, poesias e crônicas sobre a perspectiva identitária.
- Às 17h30, no Teatro Carlos Urbim, os escritores Jeferson Tenório, José Falero e Marcelino Freire reúnem-se para um bate-papo com mediação de Nanni Rios.
17 de novembro
- Às 16h30, na sala Noé de Melo Freitas do Espaço Força e Luz, Ludmilla Lis e Lilian Rocha conversam sobre o silenciamento e a força das mulheres negras na literatura.
20 de novembro
- Às 16h30, na Sala Noé de Melo Freitas do Espaço Força e Luz, Emílio Chagas, Jeanice Dias Ramos e Jones Lopes rememoram a criação da Revista Tição, publicação que foi pioneira na imprensa negra brasileira, surgida nos anos 70, em meio à ditadura militar.