Há tempos a literatura negra pede por mais espaço na Feira do Livro de Porto Alegre. Pela primeira vez em 70 anos, a festa literária contará com uma curadoria destinada a selecionar somente autores e artistas negros para dar pluralidade ao coro de vozes que debatem sobre livros, arte e sociedade entre esta sexta (1º) e o dia 20 de novembro, na Praça da Alfândega.
Quem assume o posto é a musicista e escritora Lilian Rocha, uma frequentadora assídua da Feira e uma das coordenadoras do Sarau Sopapo Poético, tradicional encontro entre negros para a leitura de poesias.
Nesta entrevista a Zero Hora, a autora dos livros de poesia Menina de Tranças (Taverna, 2018) e Negra Soul (Alternativa, 2016) conta o que preparou e reflete sobre a importância desse cargo. Confira:
Como surgiu o convite para que você assumisse esse posto inédito?
Sempre fui uma apaixonada pela Feira do Livro de Porto Alegre. As pessoas me viam na Feira quase todos os dias, porque eu gosto de estar lá. Recebi o convite da diretoria da Câmara Rio-Grandense do Livro em função de eu ser uma pessoa presente no evento e porque me tornei referência no Rio Grande do Sul com relação ao conhecimento sobre a cultura e a literatura negra.
Por que a Feira decidiu ter uma curadoria voltada para a literatura negra?
Apesar de a literatura negra ser muito requisitada no aspecto mercadológico, muitos autores ainda não têm visibilidade. Uma curadoria possibilita que se crie diversidade nesse tema. O objetivo é que o curador tenha um olhar para o que acontece no Rio Grande do Sul e no Brasil. Sendo eu uma escritora e uma musicista negra, a minha curadoria vai possibilitar que pessoas renomadas tenham visibilidade, mas também os que ainda não têm tanto espaço.
O que você preparou para a 70ª Feira do Livro de Porto Alegre?
Teremos bate-papos com autores negros e saraus com coletivos importantes, como o Coletivo de Escritores Negros e o Sopapo Poético. Sugerimos uma lista de autores negros para que os livreiros que participam da Feira busquem contemplar suas obras, como o José Falero (Os Supridores, 2020), expoente da comunidade negra de Porto Alegre que traz uma escrita completamente diferenciada, colocando na literatura a realidade tão sacrificada da Lomba do Pinheiro. Teremos o Ronald Augusto, que além do próprio trabalho autoral, tem um trabalho maravilhoso de levantamento histórico do poeta Oliveira Silveira. A Lilia Guerra, que é finalista do Prêmio São Paulo com o livro O Céu para os Bastardos (Todavia, 2023) e tem um trabalho riquíssimo com relação às mulheres periféricas, a Eliana Marques (Louças de Família, 2023), que é daqui do Rio Grande do Sul e foi finalista do Prêmio São Paulo, já ganhou o Prêmio Açorianos e o Prêmio AGES. É muito importante valorizarmos essas pessoas.
Também teremos um dia específico, chamado Preto Sou, no dia 8 de novembro, com atividades envolvendo a cultura negra desde as primeiras horas da manhã até o fim da noite. É para que as pessoas entendam que esse será um dia importante para estar na Feira e conhecer os mais variados aspectos da cultura e da arte afro-brasileiras, desde o slam até escritores consagrados, como o Cuti (o escritor paulista Luiz Silva, doutor em Literatura Brasileira pela Unicamp, um dos fundadores dos Cadernos Negros, que desde 1978 publica textos de autores negros). No dia 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, teremos uma roda de samba no Teatro Carlos Urbim com o João Sete Cordas e o grupo Negras em Canto. Também teremos quilombos participando da Feira, em maior número do que das outras vezes.
Na área adulta, não há registro de nenhuma banca da Feira do Livro focada em literatura negra. Haverá alguma nesse ano?
Não teremos uma banca específica, mas estamos pedindo para os livreiros procurarem saber quem são esses autores negros e que contemplem obras de suas autorias. Já que é uma feira que depois de 70 anos resolveu se abrir para uma curadoria de literatura negra, de nada adianta que a população não encontre esse tipo de literatura nas bancas. A diversidade não pode ser ofertada por apenas uma ou duas bancas.
Em 2020, Jeferson Tenório tornou-se o primeiro patrono negro. Isso aconteceu depois de uma manifestação de autores negros pedindo por mais espaço. Como foi esse movimento?
Em 2015, o jornalista, escritor e editor Oscar Henrique Cardoso criou o primeiro encontro de escritores negros do Rio Grande do Sul, em Canoas e Porto Alegre, mas foram encontros pontuais. Depois, o próprio Jeferson Tenório e o escritor Ronald Augusto apontaram, em artigos publicados na Zero Hora, em 2016, para a falta de autores negros em eventos literários como a Feira do Livro de Porto Alegre. E solicitaram que a Câmara Rio-Grandense do Livro apresentasse alguma posição em relação a isso. A Câmara, na época, ficou bem chateada. Na época, a Flip também foi alvo do mesmo questionamento. Foi um movimento de conquistas, de ir atrás.
O que mais falta para que a Feira do Livro avance em termos de diversidade?
É necessário maior diversidade nas bancas dos livros. As pessoas vão à Feira e não encontram obras de escritores e escritoras negros. Isso sempre foi uma grande queixa, e tem que ser modificado. Os livreiros precisam perceber que existem leitores ávidos por esse tipo de literatura. Se as bancas souberem com antecedência quem são os autores negros que virão à Feira, então eles podem disponibilizar esses livros em suas bancas. A curadoria tem o papel de dar visibilidade a esses escritores, mas a cadeia do livro tem que colaborar. Não basta somente que esses escritores venham à Feira, deem palestras e façam sessões de autógrafos, se as próprias bancas não oferecerem os livros.
Confira alguns destaques da programação especial envolvendo literatura e cultura negra:
- 2 de novembro, às 14h, na Sala O Retrato do Espaço Força e Luz: a escritora Taiasmin Ohnmacht lança seu primeiro livro de poemas, Quimeras feito incensos (Bestiário, 2024).
- 2 de novembro, às 17h30min, no Auditório Barbosa Lessa do Espaço Força e Luz: a escritora cearense Jarid Arraes, autora de Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis (Companhia das Letras/Seguinte, 2020) conversa com Lilian Rocha sobre "Quem são as Dandaras de hoje?".
- 6 de novembro, às 17h30min, no Teatro Petrobras Carlos Urbim: a apresentadora Bela Gil conversa com Elaine Maritza sobre o livro Quem vai fazer essa comida? Mulheres, trabalho doméstico e alimentação saudável (Elefante, 2023).
- 7 de novembro, às 18h, na Sala O Retrato do Espaço Força e Luz: a escritora Eliane Marques participa do Ciclo Preto Sou - Literatura Negra ao lado de Taiasmin Ohnmacht e Ana Dos Santos. As autoras conversam sobre Escrevivência e Ancestralidade nas obras literárias das escritoras negras gaúchas.
- 8 de novembro, às 15h30min: poeta, ficcionista e dramaturgo, Cuti participa do bate-papo Ciclo Preto Sou — A negritude na poesia brasileira contemporânea, com Elizandra Souza, Ronald Augusto e Duan Kissonde, no Auditório Barbosa Lessa do Espaço Força e Luz;
- 9 de novembro, às 17h30min, na Sala Noé de Melo Freitas do Espaço Força e Luz: a escritora paulista Lilia Guerra, autora de O céu para os bastardos (Editora Todavia, 2023), conversa com Winnie Bueno e Nathallia Protázio sobre "Diálogos literários e antirracistas".
- 13 de novembro, às 17h30min, na Sala Nóe de Melo Freitas do Espaço Força e Luz: conversa com a escritora Nathallia Protazio, que lança seu terceiro livro, A faxineira mais bem paga do Bom Fim, Editora Zouk, 2024). As crônicas versam sobre a ideia de que todo trabalhador está limpando a barra de alguém.
- 14 de novembro, às 14h, no Auditório Barbosa Lessa do Espaço Força e Luz: os rappers Negra Jaque e DKG Dekilograma realizam a oficina "Linhas de Cura através da palavra".
- 16 de novembro, às 17h30min, no Teatro Carlos Urbim: os escritores Jeferson Tenório, autor de O Avesso da Pele (Companhia das Letras, 2020), José Falero, autor de Os Supridores (Todavia, 2020) e Marcelino Freire, autor de Contos Negreiros (Editora Record, 2005), reúnem-se para um bate-papo.
- 20 de novembro, às 16h30min, na Sala Noé de Melo Freitas do Espaço Força e Luz: Emílio Chagas, Jeanice Dias Ramos e Jones Lopes rememoram a criação da Revista Tição, pioneira na imprensa negra brasileira, surgida nos anos 1970, em plena ditadura militar.