Em 1847, um grupo de caingangues que vivia no Vale do Caí decidiu atacar a propriedade de um imigrante alemão chamado Jacó Bohn, onde hoje fica o município de Feliz. Não gostavam da presença daquela gente de pele e olhos claros, em terras que consideravam suas. Só que, armados com mosquetões rudimentares e cães ferozes, os colonos europeus contra-atacaram e expulsaram os indígenas para o outro lado do rio. Ficou por ali, abandonada, uma criança indígena, que acabou adotada por um português e ganhou nome de Luís Antônio da Silva Lima. Logo se tornou um elo entre os germânicos e as tribos originárias da região, tanto em tempos de paz como nos de conflito. O episódio mostra que guerra não faltou nas primeiras décadas da imigração alemã no Rio Grande do Sul, que completa 200 anos em 2024.
O relato das tumultuadas disputas entre caingangues e alemães pela posse das terras dos vales dos rios do Sinos, Paranhana e Caí é o pano de fundo de Invisíveis - O lugar de indígenas e negros na história da imigração alemã, livro que será lançado nesta terça-feira (30) em Porto Alegre.
Na obra, os autores Gilson Camargo e Dominga Menezes (ambos jornalistas) mostram que, além das dificuldades já conhecidas enfrentadas pelos colonos alemães quando chegaram em 1824, a saga da imigração germânica foi também marcada pelo sofrimento dos que aqui já estavam - sobretudo indígenas e negros escravizados. Não é um período pacífico e ordeiro como faziam crer historiadores antigos, impregnados pela visão eurocentrista. O Vale do Sinos, por exemplo, tinha presença desde tempos imemoriais das etnias caingangue e guarani. Somaram-se a eles, no século XVIII, os portugueses e milhares de escravos africanos. Só então chegaram os imigrantes, justamente para substituir a mão-de-obra escravizada por outra, remunerada (ainda que mal paga).
Deu a lógica e ao longo do século XIX as divergências entre os imigrantes e os que já moravam ali foram uma constante. Eram comuns sequestros e mortes, de lado a lado. Em 1852, por exemplo, uma família inteira de alemães foi aprisionada por caingangues liderados por João Grande, um mestiço de indígena e negro, que fugira da escravidão e formara um bando acusado de diversos saques no Vale do Paranhana. A perseguição ao seu grupo foi comandada por outro indígena, o líder caingangue Faustino Ferreira Doble, que os portugueses chamavam de Caçador de Bugres. Após 15 meses de perseguição, ele localizou e matou os seguidores de João Grande, inclusive o próprio, que teve uma orelha decepada e presenteada ao presidente da Província do Rio Grande do Sul, João Cansanção, como souvenir. Os imigrantes sequestrados foram libertados.
Outro fato, possivelmente uma surpresa para a maioria dos leitores, é de que alguns imigrantes alemães adotaram costumes brasileiros e também mantiveram escravos de origem africana. É o caso do boticário Adolfo Meisterlin, de religião luterana, que em 1863 deixou no testamento para uma antiga emprega, como herança, uma escrava, Maria Joaquina. "...de cinquenta anos mais ou menos, da Nação Mina, a qual faço em remuneração dos bons serviços que a mesma me há prestado durante os longos anos em que me trata, devendo a dita escrava sair da terça dos meus bens". O achado é do historiador Ricardo Brasil Charão, um dos entrevistados no livro.
Algo esperado, num contexto em que a escravidão era tolerada como "vital para a economia" brasileira. Quando os pioneiros imigrantes alemães chegaram em 1824 ao território onde hoje está situada São Leopoldo, ali foram arranchados na Imperial Feitoria do Linho Cânhamo (hoje bairro Feitoria). Tinham como vizinhos 321 negros escravos, que ali trabalhavam, assim como uma aldeia de índios guaranis. Alguns colonos germânicos acabaram por reproduzir esse costume dos descententes de portugueses e mantendo eles mesmos alguns escravos, alertam os autores de Invisíveis - O lugar de indígenas e negros na história da imigração alemã. Embora a escravização de semelhantes fosse exceção entre os imigrantes e não regra, como no restante do Brasil imperial.
O livro é complementado por entrevistas com historiadores, antropólogos, jornalistas e advogados, num mosaico de reflexões que atingem tanto a escravidão como sua substituta econômica no Brasil, a imigração de europeus.
Invisíveis - O lugar de indígenas e negros na história da imigração alemã
Gilson Camargo e Dominga Menezes, 206 páginas, Carta Editora
R$ 62, exemplar físico
Lançamento em 30 de julho, a partir das 19h, em Porto Alegre, na Livraria Clareira (Rua Henrique Dias, 111, bairro Bom Fim). Os autógrafos serão seguidos de um bate-papo com os autores.
À venda em diversas livrarias
TRECHO
"Os ruídos de passos em meio à folhagem cessaram por alguns segundos. O silêncio foi rompido por um estrondo que reverberou na mata, levantando uma nuvem de fumaça e fagulhas. A carga de chumbinho e sal atingiu em cheio o joelho do menino indígena de 11 anos...o guri foi capturado e amarrado a uma árvore...
Sentindo-se invadidos em seu território, e, ao mesmo tempo, interessados nos metais e nas mulheres dos colonos, os indígenas andavam espalhando o terror entre os imigrantes alemães recém-chegados à região. Acossados pelos indígenas, com o passar dos anos os colonos de organizaram em uma reação armada em várias frentes. A contratação de grupos de mercenários, os "caçadores de bugres", acabou naturalizada nas colônias".