Amilton "Tom" Belmonte foi repórter policial. Mergulhou em tragédias, narrou aos leitores a complexidade de vidas no limite e mortes repentinas. E a trajetória entre corpos e textos lhe deu a noção de que reportagens podem ser o começo para algo mais profundo: romances, ambição de muitos escribas, sobretudo os dedicados a sondar o lado obscuro da alma. Dessa matéria-prima o jornalista gaúcho forjou Círculo de Sangue, seu livro de estreia.
Escrito como primeira parte de uma trilogia, Círculo de Sangue é um tiro à queima-roupa. Pega o leitor a partir dos primeiros parágrafos, ao descrever a bala da pistola acertando o alvo. Belmonte se coloca ao mesmo tempo no lugar da vítima, no do matador, no dos investigadores, no do intrincado círculo formado por todos eles _ que se entrecruza, como nos melhores romances de Rubem Fonseca.
O cenário se alterna entre a Porto Alegre do Fórum Social Mundial, há duas décadas, e a fronteiriça São Borja, terra natal de Belmonte e dos personagens principais do livro: uma família dilacerada por rancores, que gradualmente se transformam em ódio. O autor escreve com furor, como se incorporasse ao mesmo tempo assassinos, mortos, espíritos dos que já se foram e paixões dos que ainda vivem.
Há de tudo um pouco no caleidoscópio proposto por Belmonte: políticos e suas amantes, música brega, gado, romances não correspondidos, traição, desavenças, matadores profissionais. Numa trajetória que se alterna entre a década de 1970 e os anos 2000, nem sempre de forma linear. Os personagens centrais são três irmãos separados pelo ódio e uma mãe narcísica. Tudo sob a sombra de um pai onipotente e onisciente. É um thriller com pitadas freudianas, em resumo.
O maior mistério do livro (que teve tarde de autógrafos, recente, na Feira do Livro de Porto Alegre), não é a identidade dos envolvidos nos crimes, mas o destino que está reservado a cada um. A cada capítulo, uma pequena reviravolta não permite ao leitor adivinhar desfechos. O autor tomou o cuidado de criar personagens que se conhecem, alternando estima e repúdio. Amor e ciúme. O antigo e o moderno. A Fronteira, as Missões e a Capital.
Merece destaque o projeto gráfico de Gilson Camargo e as ilustrações de Everson Godinho, que dão à obra o ritmo e a aparência de uma "pulp fiction" ou dos antigos gibis de quadrinhos. Só que é literatura - e da boa.
Belmonte, 54 anos, trabalhou mais de uma década na editoria policial do Correio do Povo e depois desempenhou função similar nos jornais do Grupo Sinos. Foi, também, assessor de imprensa na Secretaria Estadual da Segurança Pública, onde continuou convivendo com policiais. Ajuda a explicar o resultado. O autor, como seus personagens, também vivenciou tragédias, o que deixa transparecer no livro. O pai de Belmonte foi assassinado num assalto em 1981 em Itaqui, na fronteira coma Argentina. E esse trauma serve de inspiração para partes do texto.
- A forma brutal com que meu pai foi morto me atormentou por quase duas décadas. Quando eu comecei a escrever este livro, consegui fechar a ferida aberta com aquele assassinato. Um processo terapêutico, de certa forma - revela Belmonte.
Como sintetiza o próprio Belmonte, ao falar da obra:
_ A narrativa é um divã emocional que coloca o leitor em constante reflexão sobre o quanto o amor e o desamor podem marcar e definir vidas para sempre. Um mergulho na profundidade das dualidades humana.
Sem dúvida, Belmonte conseguiu transformar em arte sua catarse. Como se Dalton Trevisan e Dashiell Hammett se cruzassem em algum destino entre Porto Alegre e as Missões guaraníticas.
Admito: li o livro de uma sentada. Peguei despretensioso, porque não conhecia essa faceta literária do jornalista Belmonte. Devorei numa noite e estou à espera das sequências. Que virão. A ideia é que Círculo de Sangue seja o primeiro volume de uma trilogia a ser concluída até 2025. Os próximos volumes já têm título: Rincão do Inferno e Guerrilhas do Coração.
A OBRA
Círculo de Sangue
De Tom Belmonte. Editora Carta, 192 páginas, R$ 59, em média