Por Fernando Seffner
Professor no programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS
Quem muito procura, acha. Rastros, indícios, pistas, provenientes de notícias de jornal, de falas médicas, de arquivos policiais, de esquetes teatrais e de outras fontes. É necessário um tanto de paciência e muito de pesquisa. Depois que acha, organiza tudo e quer mostrar aos demais. Foi do que se armou Jandiro Koch, no recém-lançado O Gaúcho Era Gay? Mas Bah! 1737-1939. Ao longo das mais de 400 páginas, um tanto perseguindo a extensa linha cronológica, outro tanto organizando os dados por contextos ou agregados de relações, o autor nos faz ver um robusto conjunto de indícios a mostrar que, sim, ela sempre esteve lá, acompanhando a história do Rio Grande do Sul. Mas ela quem? A presença, um tanto discreta, mas visível e comentada, de personagens gays, ou, melhor dizendo, de maricas, mariquinhas, almofadinhas, pirobos, viados, veados, mariolas, homem-mulher, mulher-homem, adamados, dândis, embonecados, ganymedes, efebos, José-Mulher, Maria-Homem, frescos, garçonnes, histéricas, sáficas, mulher macho e um sem-número mais de designações. O livro foca majoritariamente nos homens, mas exibe personagens femininas.
O que emerge da leitura, saborosíssima por sinal, é um tramado de aparições, em ambientes dos mais diversos, nas quais as sexualidades dissidentes da norma vão dizendo de si e oportunizando que outros digam delas. Até mesmo pelas declarações enfáticas de que a coisa não existe, nos mostra o autor que ali mesmo é que ela existe, sendo então necessário declarar, de modo veemente, a sua não presença. O que só faz ampliar a desconfiança em torno da presença. Seria algo próprio de uma certa classe social?
O livro nos mostra que os amores que não ousam dizer seu nome brotam em todas as classes sociais, mas com marcas distintas. Seria algo próprio do ambiente urbano, onde as pessoas, vivendo um tanto amontoadas, estariam sujeitas a provocações da libido? Jandiro nos mostra que não, pois a vida no campo faz das oportunidades de afeto, amor e tesão um bem raro, que não se deve desprezar quando dele se pode desfrutar.
Seria algo restrito às fronteiras do Rio Grande do Sul? O livro nos permite saber de muitas circulações, com personagens oriundos de outros Estados aqui chegando, sujeitos aqui nascidos indo a outros Estados e artistas que cruzavam as fronteiras do que hoje conhecemos como Mercosul, aplaudidos ali, vaiados aqui, comentados acolá. Foram todos e todas condenados, terminando seus dias em uma prisão ou hospital psiquiátrico? A leitura da obra nos faz saber que isso aconteceu, sim, mas que muita gente foi tratando de viver, deslocando-se daqui para lá, tecendo relações, sendo apreciada por seus dotes artísticos, verve humorística e habilidade de convívio social. Resistiram, sobreviveram, deixaram sua marca na história. A dizer, segundo o conhecido linguajar gaúcho, viveram suas façanhas, construíram tradições em algumas cidades pelo Interior. Se os demais mexeram com elas, elas também mexeram com os demais.

Para os mais rigorosos em termos de pesquisa histórica, o livro pode servir de roteiro para outras leituras, pois há minuciosa indicação de fontes. Pode prestar-se como porta de entrada em um universo onde há muito o que pesquisar. Para tirar do silêncio e da condenação pessoas que tiveram sua importância, ajudaram a construir práticas e convenções, viveram, amaram, trabalharam, lutaram por se fazer respeitar. Ao contrário do que se diz, enfatizar suas existências não é algo que vá nos levar à decadência. Poderá, sim, nos levar a valorizar a diversidade, o reconhecimento da diferença, o respeito pela alteridade e a importância de uma cultura democrática em questões de gênero e sexualidade, dissolvendo discursos que insistem em associar o fim do mundo ao que hoje chamamos de população LGBTQIAPN+. O fim do mundo, aliás, está hoje muito mais perto de nós por conta da crise climática do que por qualquer outro motivo. E isso, no Rio Grande do Sul, já não deveria ser razão de dúvida para ninguém. Se algo pode acabar com nossas façanhas e tradições são os desmatamentos, o avanço da monocultura, a destruição do bioma do pampa, e não a vida de pessoas que não se sentiam felizes com a norma heterossexual e buscaram a felicidade e o prazer em outros arranjos. Tal qual seguem fazendo outros gaúchos e gaúchas nos dias de hoje. Saber das histórias que o livro conta é agregar experiências em nossas vidas. E experiências são aprendizados.
O autor

Pesquisador das vivências LGBTQIA+ no Rio Grande do Sul, Jandiro Adriano Koch trabalhou por mais de uma década percorrendo acervos públicos do Estado buscando registros que acabaram compondo O Gaúcho Era Gay? Mas Bah! 1737-1939. O livro é uma espécie de enciclopédia comentada, formada por verbetes (pessoas, lugares, notícias, acontecimentos etc.) organizados por tema. Suas publicações anteriores são Babá: Esse Depravado Negro que Amou (2019) e O Crush de Álvares de Azevedo (2020), ambos pela Libretos. Este último venceu o prêmio de Livro do Ano no Açorianos de Literatura de 2021.