— A gente nunca deixou o lado financeiro guiar as nossas decisões nos quadrinhos. E acho que as pessoas não deviam deixar, porque não é o mais importante. Você não vai fazer quadrinhos para ganhar dinheiro — diz Gabriel Bá, no começo da série documental Vou Viver de HQ, do Globoplay.
Na produção, que conta a trajetória de Bá e de seu irmão gêmeo, Fábio Moon, ambos quadrinistas, a dupla defende que quem quiser entrar para o universo das HQs deve embarcar na aventura por acreditar na linguagem e, principalmente, por ter histórias para contar.
E foi justamente por estes motivos que os artistas gaúchos Cris Peter, Pablito Aguiar e Denilson Reis mergulharem no mundo das histórias que são contadas através de quadrinhos desenhados. E cada um se destacou em sua respectiva área, seja trabalhando para as grandes editoras mundiais, fazendo quadrinhos com histórias locais ou, ainda, criando aventuras independentes em fanzines.
Desta turma, Pablito Aguiar é o mais jovem. Atualmente com 34 anos, ele começou a mergulhar nas HQs já na fase adulta. Apesar de já ter um envolvimento com desenhos, foi somente quando estava atuando como diagramador, ilustrador e chargista no jornal A Semana, de Alvorada, em 2016, que tomou coragem e se ofereceu para desenvolver um projeto não-remunerado: entrevistar pessoas da cidade e transformar em quadrinhos para a publicação.
Com este movimento, ele aperfeiçoou a sua técnica e, durante um ano e meio, compartilhou a sua criatividade com a população alvoradense. Não demorou para que o seu trabalho se destacasse e começasse a ganhar admiradores, o incentivando a investir em sua arte. E, assim, focou em desenvolver o seu dom, economizando por um período para, depois, conseguir se manter apenas desenhando. Usando as redes sociais, conseguiu algumas importantes viralizações e, depois disso, os convites foram aparecendo.
Um dos principais foi para a revista Parêntese, do grupo Matinal Jornalismo. Dentro do projeto Fala Que Eu Desenho, Pablito contou a história de uma amizade entre vizinhos que nasceu durante a pandemia e acabou virando matéria no Fantástico. Hoje em dia, entre freelas e financiamento coletivo, consegue se dedicar totalmente à sua arte. E, recentemente, realizou um projeto com Eliane Brum, em que o artista foi até a casa da jornalista, em Altamira, no Pará. Da conversa, nasceu Almoço (Arquipélago, 80 páginas), livro que conta, em quadrinhos, como foi a conversa.
— Hoje em dia, vivo de quadrinhos. Só não pode parar no meio. Tem que seguir, praticar e amar. E esse é um produto democrático, que atende a todas as idades e vejo com bastante abertura. A Arquipélago, por exemplo, nunca tinha editado quadrinhos e, agora, se abriu para isso. O Almoço foi o primeiro e o título que mais vendeu na banca deles na última Feira do Livro. Mas tem várias editoras investindo nos quadrinhos brasileiros — destaca Pablito.
35 anos de aventuras
Foi depois de uma sessão de cinema de Conan – O Bárbaro, nos anos 1980, que o jovem cinéfilo Denilson Reis ficou fascinado com um mundo fantástico completamente diferente do que já tinha visto. O herói vivido por Arnold Schwarzenegger, então, virou o seu assunto favorito, até que um amigo lhe apresentou uma história em quadrinhos do personagem. Foi aí que teve a primeira imersão e, dela, nunca mais saiu.
Vivendo em Alvorada, acabou fazendo amizade, por meio de cartas, com jovens de São Luís, no Maranhão, que faziam um fanzine — mesmo sem saberem bem o que era. Juntos, eles começaram a explorar o universo da Marvel em suas revistinhas independentes, que traziam informações e desenhos de entusiastas dos universos fantásticos. Não demorou para que Denilson estivesse pronto para embarcar em seu projeto próprio, em 1987: o Tchê, fazendo referência ao apelido recebido por ele pelos amigos do Nordeste.
— Hoje, o Tchê é fanzine mais antigo em circulação no Brasil. Já são 35 anos de produção. Os fanzines chegaram na minha vida antes do meu casamento, dos meus filhos, da faculdade, da minha profissão — conta Denilson, de 54 anos, professor de História.
O criador do fanzine Tchê, logo no começo, até tentou desenhar as suas histórias, mas viu que o seu talento era para criar histórias, personagens e editar o trabalho de outros artistas. Assim, focou no que era bom e, para dar vida aos seus escritos, ele convida desenhistas para levar as produções adiante. Atualmente, o seu principal título sai anualmente, como um almanaque, mas outros são lançados esporadicamente — inclusive, um dedicado ao Conan, responsável por começar essa jornada.
Mesmo tendo sonhado, em alguns momentos, com viver de histórias em quadrinho e trabalhar em grandes estúdios, como Marvel e Mauricio de Sousa Produções, Denilson comemora conseguir, atualmente, fazer de sua paixão um negócio autossustentável. Não dá lucro, mas paga os seus próprios custos. E ele segue colocando as suas criações na rua e, quem sabe, um dia elas encontram as casas em que moram o Homem-Aranha e a Mônica.
— Quando crio uma história, um desenhista bota ela no papel, a gente manda para a gráfica e imprime uma revista, o meu ego de fã de quadrinhos comemora ao ver que aquilo se materializou. Fico feliz de ver o meu personagem, a minha história no papel. Então, o que busco é ver o meu trabalho circulando, mesmo que não consiga viver dele. A satisfação é chegar em um evento, o cara pegar a minha revista e dizer: "Gostei, vou levar" — explica.
Hoje, Denilson e o amigo Paulo Kobielski comandam o Coletivo Alvoradense de Quadrinhos, que caminha para se tornar um selo editorial. Eles editam trabalhos de artistas independentes, com a intenção de fomentar o mundo das histórias em quadrinhos, para que pessoas que sonham em entrar neste mundo fantástico possam encontrar uma nova porta aberta.
Novos rumos
Atuar nos quadrinhos da Marvel e da DC Comics é o sonho da maioria dos artistas da área. Afinal, estes são os mais famosos estúdios do mundo. E quem conseguiu chegar até eles foi Cris Peter, que atua como colorista e já assinou produções de heróis como X-Men, Capitão América, Superman, Supergirl, entre muitos outros. Como os jovens falam na internet: isso é elite.
Aos 39 anos, Cris tem um vasto currículo, que começou a ser preenchido quando ela tinha apenas 22 — e nele, inclusive, já atuou com Gabriel Bá, em 2012. Ela foi responsável por colorir a série em quadrinhos Casanova, que o brasileiro desenhou em cima do roteiro de Matt Fraction. Pelo trabalho, ela se tornou a primeira brasileira a ser indicada para o Eisner Award — o Oscar das HQs. Ela reforça, porém, que chegou até onde está de uma forma "meio acidental":
— Eu não sou muito uma referência para quem quer seguir nesse meio, porque, quando pisquei o olho, já estava lá. Para mim foi meio que "ah, deixa aproveitar essa oportunidade aqui", "ah, que legal, divertido, vou fazer isso aqui". Quando vi, já estava com uma carreira pronta para mim.
A sua trajetória começou no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), fazendo curso de histórias em quadrinhos, pois gostava muito de desenhar. Porém, logo ela descobriu que preferia ainda mais colorir. Foi assim que ela passou a colocar cor em todos os seus desenhos próprios e, quando estes acabaram, acabou pegando artes dos outros para dar vida.
Logo, ela se viu trabalhando para uma editora egípcia, que pertencia a um empresário que queria fazer os primeiros quadrinhos do país e, inclusive, publicar nos Estados Unidos. Por isso, ele acabou levando a equipe para expor na San Diego Comic-Con, mais famosa convenção de cultura pop do mundo. E foi vendo a grandiosidade do evento que ela se deu conta do tamanho do mercado internacional de HQs. Por lá, já começou a fazer os primeiros contatos.
Depois disso, ela passou a se aperfeiçoar ainda mais na área de coloração, decidida a seguir nesta área. Em 2013, ela conseguiu pagar as suas contas somente com o dinheiro conquistado de seu trabalho de colorista, logo após a indicação ao Eisner abrir as portas para ele junto ao universo das HQs gringas. Hoje, porém, depois de já ter feito de tudo um pouco, em mais de 280 títulos, trabalhando com os maiores nomes — sendo ela um deles, claro — , Cris já pensa em desacelerar e focar em outras áreas. Por isso, criou uma campanha de financiamento coletivo.
— A minha principal fonte de renda é a colonização digital de quadrinhos para o mercado americano, só que isso me deixa um pouco criativamente estagnada. Também quero fazer os meus projetos próprios, quero escrever. Gosto muito de colorir e já fiz isso durante um bom tempo da minha vida. Então, quero desbravar novos desafios — destaca ela. — O Denilson e o Pablito, por exemplo, estão em um caminho que é muito mais desafiador, que é justamente o caminho do quadrinho autoral. E é o que gostaria de fazer.