O brado “Independência ou Morte”, com o qual Dom Pedro I declarou a soberania do Brasil em relação a Portugal, não é apenas uma metáfora. Embora aquele 7 de setembro de 1822 tenha sido uma data pacífica, muito sangue correu antes e depois, até que os brasileiros vivenciassem o conceito de nação. Antes da declaração independentista, ocorreram 10 conflitos entre a Coroa portuguesa e rebeldes nas províncias do país. E foram registradas duas ocupações portuguesas em territórios vizinhos, os atuais Uruguai e Guiana Francesa.
A Independência veio e a situação, ao invés de ficar mais calma, pegou fogo. Após 1822, o Império do Brasil, tentando consolidar um país, sufocou revoltas armadas em pelo menos nove províncias. Algumas, de fundo republicano. Outras, revoltas de maior fundo econômico do que político. Os imperiais se envolveram ainda em duas guerras contra nações limítrofes, recém-emancipadas da tutela espanhola.
Esse tema fascinante, de brasileiros forjados a ferro e fogo, das pradarias do Sul às selvas do Norte, é a espinha dorsal de As Guerras de Independência do Brasil – O Processo de Criação de um Estado Nacional nos Trópicos, do jornalista capixaba Leonencio Nossa. Como ele aponta na introdução, morrer pelo Brasil quase sempre foi um ato de invisibilidade. Ao longo da campanha da Independência e nas guerras seguintes, legiões encobertas pelo tempo expuseram um legado de derrotas e vitórias. Tudo sem grande cobertura da imprensa, sem notoriedade, sem que a maioria da população soubesse de atos gloriosos (e outros, nem tanto). A visão que passou para a História é de um Brasil muito mais pacífico do que seus vizinhos belicosos, ex-colônias hispânicas. Só que não. Milhares e milhares morreram em combates que mal são conhecidos nos livros e jamais viraram filmes ou séries de TV.
Leonencio começa do começo, bem antes de 1822. O princípio está na vinda da família real portuguesa para o Brasil em 1808 (na realidade, a fuga de Dom João VI e toda a corte do seu país, invadido pelos franceses). Eles até então jamais haviam pisado em território brasileiro. Conhecer o país era necessário, e isso implicava em se indispor, vez que outra, com as oligarquias nativas há séculos instaladas nas províncias, vivendo do extrativismo e do comércio.
Sustentar a Corte no Rio significava cobrar impostos. E o controle do fisco sobre as províncias, agora mais de perto, desagradou a muitos fazendeiros. Isso resultou em dissabores e revoltas armadas, punidas pelos portugueses com incursões bélicas pelas províncias. Eles enfrentaram revoltas indígenas ou rebeldias coloniais por mais autonomia na Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Ceará, Pará, Goiás e até, vejam só, em Fernando de Noronha. Todas sufocadas.
Dom João e seu filho Pedro I também encabeçaram a tomada da Cisplatina (atual Uruguai), em embate com os espanhóis. Era uma punição aos hispânicos por terem capturado a cidade portuguesa de Colônia do Sacramento, um enclave lusitano em frente a Buenos Aires (do outro lado do Rio da Prata, atualmente território uruguaio).
Essa incursão é relativamente conhecida, sobretudo dos gaúchos, que formavam a ponta de lança do Exército, com sua famosa cavalaria. Mas é provável que a maioria não saiba que o Uruguai já foi brasileiro, de 1815 a 1820. O próprio Dom Pedro I esteve por lá, supervisionando tropas. Nesse período, combates entre portugueses e castelhanos foram registrados em São Borja, Camaquã, Santa Maria e em todo o território uruguaio. Tudo perdido na poeira da História, mas resgatado pelo autor nessa obra fascinante.
Outro embate dos habitantes do Brasil com estrangeiros virtualmente ignorado pela historiografia: a ocupação de Caiena (atual Guiana Francesa), na Amazônia, pelos portugueses (também antes da Independência do Brasil). Acredite: com três navios de guerra, os portugueses tomaram a capital da colônia francesa, numa vingança minuciosamente planejada por Dom João VI contra os franceses que tinham invadido Portugal. E lá ficaram de 1808 a 1817.
Chega então o célebre grito do Ipiranga. Após briga interna no clã dos Bragança, Dom Pedro decidiu ter um país para chamar de seu. Aliou-se a comerciantes que viam em Portugal uma matriz parasita a viver de impostos e ganhou apoio entre estudantes liberais e funcionários públicos nativos do Brasil. Deu no que deu. O ano foi de consolidação da nação recém-proclamada, com brigas contra tropas portuguesas, sobretudo no Nordeste.
Depois de 1822, estouraram conflitos opondo tropas imperiais e revoltosos em vários Estados e países: Bahia, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio, Rio Grande do Sul, Cisplatina (Uruguai), Argentina. Tudo permeado por massacres de negros e índios. Em alguns casos, como no RS, a rebelião ganhou apoio da maçonaria e tomou rumos republicanos. A Revolução Farroupilha foi a mais longa dentre as tantas que abalaram o Império.
Pacificados, os sulistas ajudaram o Império em dois grandes embates, contra a Argentina e seu ditador, Juan Manuel de Rosas, e o Uruguai (mais uma vez). Tudo detalhado por Leonencio de forma primorosa, ancorado em documentos e muitos anos de pesquisa. Uma obra diferente, distante dos textos ufanistas sobre a Independência brasileira. Até por isso, imprescindível.