Quando os europeus chegaram por aqui, cinco séculos atrás, depararam com um estranho hábito cultivado pelos povos indígenas. Depois de arrancadas de árvores que alcançavam até oito metros de altura, folhas verdes, ovais e coriáceas eram tostadas, moídas e colocadas sob infusão em cabaças, de onde o liquido era sugado com um canudo, geralmente feito de taquara ou osso. Nas 608 páginas de Mateando: Os Ervais dos Povos Indígenas, o jornalista, professor e historiador Tau Golin conta não só a história do mais enraizado costume gaúcho, como também disseca a importância fundamental do chimarrão para o povoamento do Rio Grande do Sul.
— É impossível dissociar. Aliás, o povoamento se dá pela erva-mate. O indígena fazia sua aldeia perto dos ervais — conta Golin.
Aos 66 anos e com quase duas dezenas de livros lançados, Golin é um dos mais profícuos estudiosos da cultura gaúcha. Recém saído do prelo, Mateando é o quarto volume de mais ambiciosa empreitada, a coleção A Fronteira, na qual ele reconstrói toda a ocupação da América meridional. Ao todo serão seis livros — dos quais quatro já publicados — contando a formação do sul do Brasil, além do Uruguai, Paraguai e Argentina.
É uma história banhada em sangue, marcada por interesses religiosos, econômicos e territoriais. Nesse contexto, o chimarrão passa de “erva do diabo” a “garimpo verde”, tamanho o valor adquirido pelo chá que colocava pajés em transe, curava de borracheira à crises de gota e ainda revigorava as tropas antes da roça e depois das batalhas. O chimarrão tem tamanha importância nessa trajetória que terá um segundo tomo, também com centenas de páginas, antes da derradeiro livro da coleção.
— Só o copião da pesquisa tem 4 mil páginas — avisa o escritor.
Ceva um mate e confere a entrevista concedida por Golin a GZH:
O senhor está lançando o volume 1 do quarto tomo de uma coleção sobre a formação do Rio Grande do Sul. Qual é sua ambição?
O meu projeto tem como marca as guerras de fronteira, o uso do território, os tratados e as disputas geopolíticas na América Meridional. Serão seis livros no total, sobre o povoamento dessa região. Sempre foi minha inquietação explicar como se deu a formação desse tipo sulino, a substituição do que era território dos povos indígenas por proprietários rurais.
Qual o papel da erva-mate nesse povoamento?
Ela é fundamental. Como era um território que não tinha grandes minas, o único tipo de extração que poderia se converter em mercadoria era a erva-mate indígena. O colonizador transforma isso em produto que substitui aquela cultura asiática das especiarias. Muito europeus que andaram pela Ásia, funcionários das duas coroas ibéricas e que pegaram o hábito de tomar chá, encontraram na América um outro chá, usado pelos guaranis e caingangues. Nesse livro, o tema central é justamente o papel da erva-mate no povoamento de todo esse território.
A partir de 1620, a erva-mate surge como essa bebida vigorante, mas também um diurético que curava a gota. Essa dualidade aumentou a procura também na Europa.
Quando o gaúcho ceva o mate toda manhã, quantos anos de história vêm em cada ronco da bomba?
Vem um vínculo de pertencimento muito grande, toda uma história de 12 mil anos, desde o tempo das primeiras populações aqui no Rio Grande do Sul. Quando o europeu chegou, o hábito já estava estabelecido, então não tem como registrar o nascimento do chimarrão, apenas seu largo uso pelos indígenas. Era uma tecnologia altamente elaborada. Pegavam uma folha de árvore, e não um chá, faziam o sapeco (rápida tostagem), depois a secagem e moíam. Os jesuítas chamavam os pajés de chupadores, pois usavam uma taquara ou um osso como bomba, e a cabaça como cuia. Era algo espantoso.
O livro abrange do Paraná aos territórios do Uruguai, Argentina e Paraguai. Qual era o tamanho da área cultivada com erva-mate?
Esse território vinha em diagonal, pelas terras altas desde Maracaju, no sul do Mato Grosso, até aqui a costa da Lagoa dos Patos. Eram ervais nativos. O indígena percebeu que não dava pra plantar, não pegava, porque a semente caía antes de estar madura. Mas depois de um tempo no chão, ela germinava e criava muda. Daí eles pegavam essas mudas e replantavam perto das aldeias. Foi assim que surgiram os primeiros ervais cultivados.
O governador do Rio da Prata, Hernando Arias de Saavedra, disse aos guaranis: “esta erva será a ruína de vossa nação”. Mais tarde, em 1596, proibiu o hábito de matear. Por quê?
A erva era usada nos cerimoniais do pajés, então os jesuítas a chamavam de erva do diabo, erva maldita. Os pajés também usavam como se fosse rapé, para ajudar no transe, e diziam falar através da erva. Ela é uma entidade anímica e os indígenas não faziam distinção entre o natural e o sobrenatural. Os padres, naturalmente, não gostam disso, nem os governantes, pois algumas festas duravam três dias, às vezes uma semana. Era um carnaval, com música, dança e bebida.
Mas depois não passaram a aceitar, dizendo que reduzia “as borracheiras” dos indígenas?
Sim, uma das formas que eles usaram para combater o álcool era a erva-mate. Depois, perceberam que os indígenas remavam um dia inteiro, só tomando mate, longas distâncias.
A “erva do diabo” virou medida de valor, com o retábulo de uma igreja, por exemplo, valendo 1 mil arrobas de erva, e chegou a dar mais lucro que gado e garimpo. Como isso ocorreu?
Foi a partir de 1620. Havia muita demanda, mercados muito grandes no que seria hoje o Cone Sul. O Peru, o Chile, todo o mundo incaico. A epidemia terrível da época era a gota, principalmente pelo alto consumo de carne de caça. Então a erva-mate surge como essa bebida vigorante, mas também um diurético poderoso que curava a gota. Essa dualidade de bebida e remédio aumentou a procura também na Europa, para onde era levada como especiaria.
Os povos indígenas eram muito explorados no processo de produção?
Eles estavam entre a servidão espanhola e a escravidão bandeirante. Muitos eram transferidos para as casas dos encomenderos (estancieiros), outros continuavam nas aldeias, mas eram extraídos para trabalhar em garimpos, nas lavouras e na produção de erva-mate. Era um sistema muito complexo, com o padre no papel de gestor da relação com o Estado e com o Vaticano. Num determinando momento, os caciques pediram para ser reconhecidos como súditos, pois isso os livraria da servidão, ainda que tivessem de pagar impostos. Na mesma época, os bandeirantes começam a destruir as reduções, então os caciques tiveram de fazer escolhas para não serem dizimados.
Houve uma explosão de violência.
Sim, uma violência terrível. Depois que os bandeirantes começam a destruição no Guairá, entre o Paraná e Santa Catarina, os padres vão à Madri e ao Vaticano pedir a liberação de arma de fogo, cujo uso era proibido aos missioneiros. É quando se formam os arsenais nas missões e os jesuítas que tinham sido militares passam a dar treinamento nas reduções. Começa uma militarização das missões; Mesmo que na década de 1630 muitas reduções tenham sido destruídas no Rio Grande do Sul, os indígenas conseguiram brecar a entrada dos bandeirantes.
Alguns padres foram massacrados pelos indígenas. Havia uma revolta com os espanhóis também?
Os inimigos principais eram os bandeirantes portugueses e os encomenderos espanhóis. Os caciques viam na relação com as reduções sua própria sobrevivência como povo, a manutenção do seu território. O grande temor era o projeto lusitano de impor um sistema de escravidão e levar suas fronteiras até o Rio da Prata, tanto que em 1680 eles fundam a Colônia de Sacramento, deflagrando as guerras pelo território.
Nesse contexto expansionista e belicista, qual a importância da erva-mate?
Era fundamental, o chamado munício de boca. Na ração do exército missioneiro, era indispensável a erva-mate. Cada indígena levava dois quilos de erva por mês. Na primeira guerra da Colônia de Sacramento, em 1680, haviam três comandantes indígenas movimentando de 3 mil a 5 mil guerreiros. Imagina cada um com dois quilos de erva. Eles iam mateando, chegavam nos povoados e trocavam por produtos, como farinha de mandioca. Quando Buenos Aires era ameaçada, tinha acampamentos com 1 mil, 2 mil indígenas missioneiros. Tudo isso criava hábitos, um estilo de vida.
Depois de 608 páginas dedicadas a explicar a importância da erva-mate na formação do Rio Grande do Sul, que histórias o senhor vai contar no segundo tomo?
O segundo pega desde as origens até a formação, no início do século 18, dos Sete Povos das Missões. O século 18 é o auge das missões, quando todas as potencialidades se realizam. Elas controlam praticamente a maioria das mercadorias que chegava pelo Rio da Prata, eram grandes exportadores, fabricavam instrumentos, estátuas, roupas, ponchos. E, claro, é quando se dá a grande difusão da erva-mate, organizada pelas missões. Também há uma colaboração entre cacicados cristianizados, vivendo em sistema missioneiro, com as aldeias tradicionais. O segundo volume conta esse auge, a guerra guaranítica e a demarcação do Tratado de Santo Ildefonso, inclusive com as tentativas de mudar o tratado em função dos grandes ervais que haviam no Alto Jacuí. A documentação é muito farta.
Para encerrar, uma questão fundamental: o senhor prefere erva de pau ou a pura folha?
Eu tomo pura folha, moída grossa.
O livro
Mateando: Os Ervais dos Povos Indígenas (volume 1 do Tomo 4 da série A Fronteira). De Tau Golin. Méritos Editora, 608 páginas, R$ 129 (R$ 99 no preço promocional pelo site da editora: meritos.com.br)