Por Fernanda Grabauska
Jornalista
É possível narrar o desencanto por uma perspectiva de completo encanto. Eis talvez o principal mérito de O Plantador de Abóboras, de Luís Cardoso, primeiro timorense a conquistar o Prêmio Oceanos de Literatura. E, embora a literatura africana em português abunde em universos mágicos que se apoderam de elementos da memória coletiva – basta observar os trabalhos de Mia Couto ou de José Eduardo Agualusa –, Cardoso obtém o efeito sem apelar a estruturas que já começam a se tornar formulares para leitores fiéis.
Nascido em 1958, o timorense tem em O Plantador de Abóboras seu sétimo romance. Nele, uma mulher – que há 24 anos espera o retorno do noivo durante a ocupação Indonésia – relata, a um narratário, a história de seu país. As abóboras do título, parte da história do casal, funcionam como um fio de Ariadne para um corpus de metáforas que a muitos pode soar novo: tendo no petróleo sua principal riqueza e sua principal fonte de conflitos, o Timor, mostra Cardoso, precisa plantar riquezas sustentáveis. Abóboras, pois – e amor.
O resultado é uma prosa rica, em que o tétum timorense se mistura ao português mostrando que “a língua portuguesa permanece viva e que ela ganhou densidade e profundidade em cada fração de terra onde é falada”, como explicou o brasileiro Itamar Vieira Júnior (de Torto Arado), membro do júri e responsável por apresentar os laureados com o Oceanos. A narradora mostra sede de mundo para contar sua história. Para isso, recorre às canções de Doris Day, ao universo da pintura até mesmo ao Quixote de Cervantes buscando estabelecer seus paralelos. Tal efeito – o “poder da linguagem” a que se referiu Vieira Júnior – parece vir do próprio afastamento de Luís Cardoso de sua terra natal.
Após passar a infância no Timor Leste, onde o trabalho do pai como enfermeiro levou a família a diversas localidades e Cardoso, a diversos idiomas timorenses, o autor perseguiu a formação superior em Silvicultura em Lisboa. Jamais voltou a viver no Timor, embora tenha, da capital portuguesa, militado pela independência do país natal como representante do Conselho Nacional da Resistência Maubere. Em 2001, retornou para uma viagem com José Saramago – e, ao visitar literais ruínas do passado, presenciou o incidente que lhe inspirou o romance.
“Enquanto estava lá, passou junto de mim uma senhora que começou a falar da história de Timor. E começou a contar sua própria história. (...) Ela estava ali para falar com as montanhas, foi para ali contar uma história para as montanhas, mas, ao mesmo tempo, fui-me apercebendo que a história que ela estava a contar não era para as montanhas, e sim era para mim”, explicou Cardoso, ao aceitar o prêmio. “Ela estava a contar cem anos da história do Timor Leste, três guerras sucessivas. Desde aquele dia, pus na cabeça que um dia havia de contar essa história num romance com uma voz feminina”, disse.
Passados coloniais e as sucessivas revoluções citadas por Cardoso se interpõem à consolidação de uma literatura nacional nas antigas colônias portuguesas. “Temos literatura oral”, ressalta o escritor, “mas não temos uma literatura escrita em Timor, e a literatura escrita está a começar. E eu estou a dar o pontapé de saída”.
Se O Plantador de Abóboras é amostra de uma literatura timorense a ser criada, o empreendimento começa imenso. Lamentavelmente ainda inédito no Brasil, o livro – que leva o enigmático subtítulo Sonata para uma Neblina – é um retrato que flerta com o realismo fantástico, que transita entre a mitologia e a crítica social ao abordar a história do Timor Leste desde a ocupação portuguesa. A narradora sem nome desdobra o destinatário de sua história em mais de um – por vezes, dirige-se a um visitante misterioso, por outras, ao noivo apelidado de Sancho Pança. E é àquele herói improvável, baluarte de lucidez em tempos insanos, que Cardoso e sua narradora resumem seu Timor:
“Extraordinário, Sancho Pança, é este povo (...) que aguenta tudo e todos com extraordinária paciência. Primeiro foram os malae colonialistas, depois os kamikazes do Japão, mais tarde os komodo ou lagartos da Indonésia e, por fim, os seus libertadores”.
Os vencedores
O Plantador de Abóboras, de Luís Cardoso, foi publicado pela editora Abysmo, de Portugal. Anunciado vencedor do Oceanos 2021 no dia 8 de dezembro, o livro ainda está inédito no Brasil. O segundo lugar na premiação ficou com O Ausente, de Edmilson de Almeida Pereira, e o terceiro, com O Osso do Meio, de Gonçalo M. Tavares.