Há um grande mistério rondando a história da filosofia: onde foram parar todas as filósofas mulheres? É o enigma abraçado por Temistocleia, de Maria de Nazareth Agra Hassen, em que é redescoberta a trajetória da mestre de Pitágoras. Novo livro infantil da Tomo Editorial, a obra ainda apresenta ao público a coleção Filosofinhas.
É um desdobramento da amada coleção Filosofinhos, também organizada por Maria de Nazareth, que imagina os grandes pensadores da humanidade como crianças sabichonas. De Sócrates a Karl Marx, os traços de Francisco Juska Filho dão contornos simpáticos às figuras históricas, que proclamam suas ideias revolucionárias com a simplicidade de “2+2=4”.
— O modo lúdico de contar as histórias, a identificação que leitores podem ter com as personagens, que são ainda crianças, ajudam nessa introdução ao mundo da filosofia — comenta o editor da Tomo, João Carneiro.
Não há idade precoce demais para apresentar a filosofia aos pequenos e nem é novidade tentar fazer isso por meio dos livros. Best-seller do gênero, O Mundo de Sofia foi publicado há três décadas justamente com tal objetivo. Mas, mesmo no grande sucesso de Jostein Gaarder, há um problema similar ao encontrado nos Filosofinhos: todos os capítulos são dedicados aos pensadores homens.
— As Filosofinhas surgem como uma demanda importante de parcela dos leitores que reclamavam que Beauvoir estivesse no mesmo volume que Sartre — conta Maria de Nazareth. — Por mais que explicássemos que eles tiveram grande importância como um casal, apesar de todos os percalços da relação, as pessoas demandavam Simone e outras filósofas numa coleção que fosse delas. E nós acatamos a ideia.
Maria de Nazareth vem trabalhando há mais de dois anos na nova empreitada, que tem um capítulo inicial bastante apropriado: Temistocleia, como adiantamos, a primeira filósofa do Ocidente. Como não poderia deixar de ser, a questão central na história é por que esquecemos o nome dela, enquanto seu pupilo e talvez irmão, Pitágoras, segue vivo em nossa memória até hoje?
— É como se a Temistocleia sintetizasse em si a história de muitas mulheres filósofas que sofreram esse apagamento. É de se imaginar quantas mais houve e que desapareceram ou quantas mais foram barradas em alguma fase de sua produção filosófica. E isso, claro, aplica-se a outras questões, a mulheres cientistas, ativistas, artistas — reflete a autora.
Da Grécia Antiga, a série parte para a geração pós-freudiana em seu segundo volume, focado na psicanalista Melanie Klein — também já nas livrarias, com autoria de Celso Gutfreind. E há outros nomes no forno, adianta Maria de Nazareth, como o de Hannah Arendt. Em fb.com/Filosofinhas, é possível acompanhar as novidades da coleção.
Fãs de filosofia
Mas as crianças querem saber de filosofia? Querem sim. Um exemplo é Heitor, seis anos, que descobriu os Filosofinhos por conta própria, como recorda a mãe dele, a professora de literatura Sabrina Daraújo:
— Ele falou: "Mãe, eu sei que existem os filósofos, eu quero conhecer os filósofos, eu quero saber mais dos filósofos". Eu virei e falei assim: "É, meu filho, mas é difícil achar para criança". E ele: "Não, mãe! Tem a Coleção Filosofinhos. Eu achei. Eu procurei e eu achei. Tem Descartes, tem Sócrates, tem Marx..." Ai, pronto.
Foi uma festa na casa de Heitor quando os livros chegaram e ele queria ler todos no mesmo dia — mas acabou aceitando um ritmo mais parcimonioso. Mesmo depois de lidos, os volumes passaram a ser relidos pelo menino, que também tenta convencer os colegas e amigos a conhecer os filósofos.
Leitor voraz, atualmente desbravando a mitologia grega, Heitor contou a GZH parte de sua fascinação com a série da Tomo Editorial:
— O Descartes, ele era meio maluquinho, ele pensa tanto igual eu. Olha, minha mente tá machucada, eu preciso de um médico, porque eu estou pensando em tudo ao mesmo tempo. Agora que eu tô falando, tô pensando em comer um hambúrguer. E também na frase mais importante dele, que é: "Penso, logo existo". Isso eu aprendi muito tempo atrás... Na verdade, um ano (risos).
E ele não está sozinho. “Clarissa ficou muito empolgada em conhecer os 'livros da Mamãe' só que pra ela!”, compartilhou a professora de sociologia Ludmila Raquel Karino Tavares sobre o momento em que a filha dela, à época com cinco anos, recebeu em casa os Filosofinhos. “Abrimos, fui falando os nomes pra ela... e... ela pensou que René Descartes era uma menina”.
O que se seguiu, então, foi um diálogo que prova a importância das Filosofinhas:
— É o René, filha, é menino.
— Mãe, só tem uma menina aqui mesmo? Os outros são todos meninos? Só tem "filófisos" meninos, é? Não tem mulher não? Só uma? E o livro dela é só metade. Por quê?
Agora, afinal, elas finalmente tomam de volta seu espaço. Para Maria de Narazeth, essa representatividade é fundamental para cimentar um projeto de igualdade nas próximas gerações — e, igualmente fundamental é que meninos e meninas tenham acesso a estes textos e pensamentos:
— Quando os meninos conhecem a filosofia produzida pelas mulheres, eles naturalizam essa possibilidade. Quando as meninas conhecem a filosofia produzida por mulheres, elas percebem que podem fazer parte dela, como autoras. De quebra, todos se dão conta de que podem ser autores de suas vidas e de seus pensamentos.
Filosofia para a vida
Ainda reverberando entre os leitores, já se passaram quase duas décadas desde que René Descartes inaugurou a coleção Filosofinhos, em 2003. De lá para cá, o objetivo da série permaneceu o mesmo: incentivar a disposição natural das crianças de questionar e se admirar diante do mundo ao seu redor. E os efeitos desse abrir de olhos e horizontes não ficam restritos à infância:
— Essa característica de perguntar e não se contentar com repostas simplórias faz nascer uma atitude filosófica, que, uma vez tenha caído no gosto da criança, ela leva para toda a vida — destaca o editor da Tomo.
Maria de Nazareth ainda ressalta que não é como se a coleção, sozinha, criasse um filósofo. Mas ela oferece alicerces capazes de sustentar um grande futuro, como apontam diversos relatos de crianças que cresceram com os Filosofinhos:
— A coleção já tem um tempo de vida que permitiu a alguns leitores se graduarem em Filosofia e mencionarem ela como a primeira referência de filosofia de suas vidas — recorda, com orgulho, a escritora.