Por Paulo Rosa
Médico, co-organizador do livro “Psicanálise em Pelotas” (2021)
Brasil doído. Doem-lhe as costas, com as endemias regionais, sempre à espreita. Dói-lhe a respiração, com as velhas epidemias, que vão e voltam. Agora é bem pior, dores atrozes de corpo e alma: a sindemia mortal. Uma sindemia, o passo além das pandemias, é a própria sinfonia do inferno, em que todos os instrumentos – e seus instrumentadores – se afinam, macabros, voltados à música da dor, do mal e da morte. Exagero? O país é o sexto do mundo em população, e agora é o primeiro, acima de todos, em mortes por milhão de habitantes (6,3). Os instrumentadores tardaram nas vacinas, para lá de insuficientes, e lançam olhares superiores para quem usa máscara, não se aglomera e defende quarentenas.
Pois Não Abrir os Olhos, de Alfredo Aquino, abre-se como sendeiro luminoso para percorrer o sinistro da sindemia atual. É sem dúvida um dos primeiros romances publicados sobre a crise universal atual. A narrativa nos leva a viver o passo a passo sofrido de um infectado por covid-19, a iminência da morte, as incertezas que explodem ao nos aproximarmos do presumível fim. É esse convívio diário com a sombra funesta, qual um relatório médico-literário, que, ao transcender a ciência, alcança o nível mágico de produzir arte a partir do sofrimento próprio.
A., o personagem, lá pelas tantas, “naquele asséptico quarto no hospital”, comenta a solidão. Ela transcende o estar a sós apenas porque família ou amigos estejam ausentes. A. toca a solidão existencial e reflete que “a vida é um caminho com bifurcações”, onde é comum conjecturar sobre o que poderíamos estar vivendo, caso tivéssemos escolhido a alternativa desdenhada. Caindo num sonho diurno, A. recorda, e com a recordação nos leva ao interior da França, uma cena de beleza e paz extraordinárias. Havia música e expunha-se ali a feira farmier, na pequena praça da cidade. Em certo momento A. é surpreendido quando “uma senhora graciosa já não tão moça começou a dançar, descalça, sozinha e com um largo vestido estival, belamente florido. A. ficou observando a dança que era criativa e harmônica... os outros já estavam acostumados com aquele evento...”. Timidamente, A. aproximou-se da dama que baila, saudou-a e pediu-lhe um autógrafo. Ela “perguntou de que país ele viera e concedeu-lhe um sorriso e um autógrafo”.
A descrição da cena tem tal poder plástico e mnésico que nos induz à experiência de leveza, algo tão desejável quanto escasso nessa vida de agora. Imagine-se o vigor de tal memória-devaneio para A., estando ele a sós no quarto impessoal. Que me lembre, vem de Leonardo da Vinci a expressão “quando estou só, estou por inteiro; quando estou com o outro, estou pela metade”. Daí se depreende que teríamos a humana necessidade de viver experiências a sós, como requisito para encontrar consigo mesmo, a partir do que se poderia desenvolver uma surpreendente, inesperada amizade. Ser amigo de si não é para amadores. Algo se poderia facilitar se nos tomarmos como se fôssemos outra pessoa. Sou amigo de mim? Perguntou-me um dia minha analista uruguaia. Bela questão para tempos sindêmicos.
Aquino vem propor-nos a difícil arte de quarentenar, verbo não conjugado no país. Ele, de certo, recordou Quíron, o centauro dos mitos gregos, que sabia da arte da medicina e tirava ímpeto e sabedoria para curar, ao ter numa das patas uma ferida incurável. Um padecimento ou a proximidade da morte podem ser fonte de superação e de elevação da alma. Dois milênios depois, a reflexão nietzcheana, em Ecce Homo (1888), deu-se na mesma direção: “O que não acaba com ele, fortalece-o”. O livro Não Abrir os Olhos vem nessa sequência milenar e nos faz lembrar a ideia do eterno retorno do filósofo alemão. Temos agora em mãos uma atualização 2021 d.C., que reitera o humano paradoxo de fragilidade-potência.
Ao final do romance, recuperado, A. sai de viagem, a buscar o sentido da vida: encontrar as pessoas queridas. O livro se fecha com a palavra “silêncio” e deixa ao leitor um sabor de busca, doação e incerteza, como a vida.
Alfredo Aquino nos mostra suas afeições borgeanas, escolhendo como epígrafe a forte passagem de El Hacedor: “Conocía el terror pero también la cólera y el coraje, y una vez fue el primero en escalar un muro enemigo”. Identifico no autor a destreza del gaucho Borges, que sai a campo para as peleias que se apresentarem.
Aquino, un gaucho en su camino.