Após oito anos sem lançar ficção, Martha Medeiros volta com um romance em grande estilo. A Claridade Lá Fora acaba de chegar às livrarias com todos os ingredientes para permanecer uma boa temporada na lista dos mais vendidos. Além de uma personagem central forte, que não se rende a estereótipos, Martha toca em temas quentes do momento, como transexualidade e igualdade de gênero. E tudo isso é costurado com uma prosa fluida e repleta de segredos, revelações e viradas no enredo.
Ligia, personagem central, é uma tradutora casada com Nuno, professor universitário. Depois de viver na França, o casal se frustra com a cultura e a educação do Brasil. Após a aposentadoria de Nuno, vão morar no litoral, alheios aos vizinhos e turistas, imersos em um mundo de livros, filmes e música erudita.
Tudo muda quando, por circunstâncias inesperadas, Ligia precisa retomar o contato com a realidade que despreza e criar novos laços de afeto – inclusive com a filha, uma cantora trans com quem havia rompido relações.
Nesta entrevista, Martha conta como foi a gênese do livro e afirma que A Claridade Lá Fora é um romance sobre família – embora não exatamente a família tradicional brasileira.
Como nasceu a ideia de A Claridade Lá Fora?
Em 2016, um cineasta gaúcho que mora em Londres, Andrei Koscina, me convidou para fazer um roteiro e apontou uma crônica minha que podia ser um pontapé inicial. Eu nunca tinha escrito um roteiro, e ele nunca tinha filmado um longa. Era uma aventura para todo mundo. Topei. No meio do processo, o roteirista Sergio Clemente se agregou ao projeto para dar uma supervisão, pensando em cinema.
Por que o roteiro se tornou um romance?
Já estávamos com elenco montado, anuência dos atores, orçamento. Mas aí demos uma parada. Houve mudança de governo, inseguranças. Então aproveitei o isolamento de 2020 para transformar o roteiro em romance. Pode ser que, com o lançamento do livro, haja uma retomada. Mas meu projeto foi concluído com o lançamento desse livro. O que eu queria era contar essa história.
É seu primeiro livro em terceira pessoa. Como foi a experiência de escrita?
Bastante diferente. Em primeira pessoa, eu me apropriava da personagem e dava minha voz. Uma das coisas boas de escrever em terceira pessoa é que realmente saí do meu universo. Era como se eu espiasse a personagem pelo buraco da fechadura. E também foi bom sair do universo do sofrimento por amor, sobre o qual já escrevi muito. Queria falar de outros sofrimentos, de outras angústias. O mundo não se resume a histórias de amor.
O livro não romantiza a maternidade e trata de questões como transexualidade e igualdade de gênero. No momento em que o Brasil tomou uma guinada conservadora, você não teme ser mal interpretada?
O livro não tem nada a ver com política. A história se passa em 2015 e ele foi escrito a partir do roteiro que concluí em 2017. Ou seja, não estávamos na era Bolsonaro. Naquela época, a polarização política não era tão radical e nem havia pandemia. Não quero nem pensar que vivemos em um país em que esse livro possa ser considerado inadequado ou coisa parecida. Não consigo sequer imaginar isso. É simplesmente a história de uma família.
Família é uma das principais bandeiras dos conservadores.
Sim, mas a do meu livro não é a família tradicional brasileira. Aliás, está bem longe dela. Qual é a graça de escrever só sobre aquilo que é bonitinho e todo mundo gosta? A arte está aí para nos provocar.