Por Guto Leite
Professor de literatura brasileira na UFRGS, cancionista e poeta
A história literária de uma sociedade patriarcal e escravista elege por cânone homens brancos heterossexuais. Ponto. Nem todos são homens, nem todos são brancos, nem todos são heterossexuais (como afirmar? Logo volto a isso), mas a regra é essa, o que acarreta ausências absurdas, como Carolina Maria de Jesus, Hilda Hilst, Lygia Fagundes Telles e João Gilberto Noll, para citar só imbatíveis. As escolhas que constroem esse cânone, em longuíssimos arcos de tempo, passam por pessoas, de carne e osso, mas o problema, e isso é um problema, é estrutural. É por essa razão, inclusive, que imensos esforços de algumas pessoas tendem a gerar resultado tímido, pois sempre deparam com uma estrutura que os combate ou desfaz seus avanços. Estrutura essa que, por sua vez, é um reflexo distorcido, mas nítido, da sociedade que a produz.
Os trabalhos do historiador Jandiro Adriano Koch – Babá, Esse Depravado Negro que Amou (2019) e O Crush de Álvares de Azevedo (2020) – estão na contracorrente das forças regressivas que atuam na história e na história literária. No primeiro caso, parte de um ambivalente texto de Pardal Mallet, Coelho Neto e Paula Ney para recuperar a vida de Babá, negro, homossexual e profissional do sexo, célebre no Rio de Janeiro da década de 1880. Chamo o relato de ambivalente porque, por mais que os autores desfaçam um silêncio dos periódicos e levem à luz a história de Babá, criticado desde as primeiras linhas do texto, incorrem na interpretação de tomar “feminismo”, lá entendido como “qualidade dos efeminados”, como moléstia, doença, que lamentavam e que teriam de algum modo conduzido ao desfecho trágico de Babá, que se suicida por amor, segundo o que se consegue inferir. Livro relativamente curto (60 páginas), mas instigante; deve ser lido por quem se interessa ou estuda os temas afins ou o período.
O Crush de Álvares de Azevedo é um trabalho de mais fôlego (152 páginas) e trilha bem mais tortuosa e sofisticada do que o livro anterior. Enquanto Babá trata de revelar a história e perscrutar as posições de escritores, de periódicos, da opinião pública etc. do Rio do fim do século 19, O Crush consiste, centralmente, na recuperação de uma figura próxima do poeta, talvez tenham tido um relacionamento erótico, e, a partir disso, recuperar os esforços conservadores, senão homofóbicos, da construção do cânone romântico. Koch não está provando por A + B que Álvares de Azevedo tinha por crush o advogado gaúcho Luiz Antônio da Silva Nunes, mas faz a devastadora pergunta caetânica: “Por que não?”. Pergunta que constrange as redobradas preocupações, de antes e de hoje, na manutenção de um cânone heterossexual.
Com pesquisa invejável, de jornais, documentos, ensaios acadêmicos etc. – única ausência que lamento é o ensaio de Antonio Candido, Cavalgada Ambígua, que poderia colocar uma tensão a mais na conversa –, O Crush realiza ainda outro feito, que é deslocar do comentário ao debate as opressões sofridas pela comunidade LGBTQI+. Quero sublinhar isso: numa sociedade fortemente patriarcal como a nossa, que se desdobra em taxas indecentes de feminicídio (uma morte a cada sete horas) e assassinato de LGBTs (uma morte a cada 23 horas), a orientação sexual ou performação de gênero diferente do sexo do sujeito ocupa o espaço do bochicho, da maledicência, como se permitido no diz-que-diz da vida cotidiana, mas proibido nos livros de história. (Por exemplo: numa capa recente do caderno Ilustrada, na Folha de S. Paulo, sobre a nomeação do ator Mário Frias para a Secretaria de Cultura do governo federal, uma foto nua e a manchete “O homem do presidente”. Contra o fascismo, todas as armas, ok, mas entender que seja uma arma sugerir a homossexualidade do presidente é que são elas! É o risinho de escárnio, o assunto da vizinhança.) Os livros de Jandiro não têm isso, botam o bloco na rua e acusam um dos recalques do cânone, sempre construídos com violências de diversas ordens.
Ainda mais do que Babá, O Crush é fundamental. Não para dizer que Álvares de Azevedo seja ou não homossexual – como se fosse também algo sempre fixo, imutável –, mas para trazer o cânone para perto da matéria da vida. Vamos ser francos, só para borboletear: no Brasil, quantas e quantos grandes escritoras e escritores heterossexuais você conhece? Garanto que não são muitos e, se são, são menos do que imagina. Voltando ao início, mesmo que o crítico se atenha à forma, como é meu caso, as perspectivas que se estetizam e se estabilizam não podem ser reduzidas a uma ou duas. O difícil é articular como as experiências se decantam, inclusive o jogo de cena, my dearest friend, é se perguntar como estão presentes na forma os conteúdos dissonantes, não hegemônicos. Mas esse é um problema do crítico literário, não de historiador. Os problemas de historiador o autor resolveu muito bem, o que já ajuda um monte.
Bate-papo online
Às 19h deste domingo (28/6), Dia Internacional do Orgulho LGBTQI+, Jandiro Adriano Koch estará no canal do YouTube da Rede de Historiadorxs LGBTQI+ para uma conversa com Benito Bisso Schmidt, Ailton Carneiro e Rita de Cassia Colaço Rodrigues.