"Quem quer assistir a um grupo de crianças matar umas às outras?", questiona um personagem a certa altura de A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes, prelúdio da sala literária Jogos Vorazes, que será lançado nesta sexta-feira (19) no Brasil. É uma das questões fundamentais da trilogia distópica que há uma década apresentou ao mundo Panem. Na nação tirânica, a Capital demonstra seu poderio sobre seus 12 distritos promovendo um reality show macabro, em que jovens são obrigados a lutar até a morte em uma disputa televisionada.
Depois de conquistar o público com a tempestuosa, mas, em última instância, carismática protagonista Katniss Everdeen (interpretada nos cinemas por Jennifer Lawrence), a escritora Suzanne Collins decidiu tomar um caminho mais ousado na nova empreitada. Aqui, é o presidente Snow (vivido nos filmes por Donald Sutherland) quem comanda o show, ninguém menos que a mente por trás dos Jogos Vorazes e o principal nêmesis da heroína.
Na nova obra, no entanto, ele está longe de ser a figura imponente conhecida por Katniss — com sua rosa na lapela para disfarçar o cheiro de sangue em seu hálito. Quando a história se desenrola, 64 anos antes do livro um, Coriolanus Snow é apenas um jovem lutando contra a desnutrição. Membro de uma família de renome falida pela guerra civil, ele age de forma inescrupulosa para retornar ao topo da pirâmide social.
E os Jogos Vorazes acabam oferecendo uma oportunidade perfeita a Snow. Apenas 10 anos depois do acordo pós-guerra civil que estabeleceu as regras da competição, o evento se assemelha mais a uma arena de gladiadores romanos do que ao sofisticado programa de televisão que viria a ser. O desafio dos jovens mais brilhantes da Capital, Snow entre eles, é transformar o espetáculo grotesco em um entretenimento indispensável.
Assim, eles são recrutados para serem mentores dos novos participantes dos Jogos. Em mais uma forma de entrelaçar o prelúdio com a trilogia posterior, calha de Snow ser designado à garota sorteada no Distrito 12, o mesmo de Katniss. Do outro lado da arena, desta vez é possível compreender melhor como são as relações entre os aristocratas da Capital e os distritos, e a visão deles de Panem.
Durante esta jornada, Snow passa de um jovem que derrama lágrimas por causa de páginas queimadas de livros infantis a um homem que calcula cada um de seus movimentos e busca manipular a todos. Uma transformação que pode parecer natural, à medida que ele presencia dia após dia cenas de horror, do canibalismo por necessidade até a crueldade sem justificativa.
Suzanne Collins, porém, rejeita uma resposta simples. Se desde o início os leitores conhecem bem o tirano que Snow se tornará, ela faz questão de mostrar que a construção dele não é um processo simples. É o resultado de uma complexa combinação de personalidade, experiências traumáticas e escolhas. Para a escritora, assim como heróis, ditadores não nascem, eles são criados.
Sucesso
Desde que foi publicada, em setembro de 2008, a série de Jogos Vorazes já vendeu mais de 100 milhões de cópias, estando presente em 56 países. E o público, aparentemente, estava ávido por mais: apenas em sua semana de lançamento nos Estados Unidos, em maio, foram vendidos 500 mil exemplares de A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes.
— A trilogia discute temas como autoritarismo, influência política da mídia e a relação entre violência e espetáculo, que estão muito presentes nas discussões atuais também. Na verdade, acho que Jogos Vorazes nunca esteve tão atual — afirma a editora da Rocco Paula Drummond, que acredita que a série deve angariar mais fãs com o novo lançamento.
A visão pessimista do futuro apresentada pela saga não é uma novidade no mundo literário, uma vez que distopias fazem sucesso há décadas. A trilogia inaugurou, no entanto, uma onda do gênero na literatura jovem, com a publicação posterior de séries como Divergente, de Veronica Roth, e Legend, de Marie Lu.
Para Paula, a emergência das distopias juvenis nos últimos anos é também um reflexo da situação mundial, e estão enganados aqueles que imaginam que o público jovem não está atento a temas sérios, com relevância social e política:
— De maneira geral, o leitor jovem é muito engajado e aberto à diversidade e à discussão social, então acredito que a série Jogos Vorazes ainda tem um longo caminho e vai passar por muitas gerações, considerando os temas que se propõe a debater — destaca.
A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes, de Suzanne Collins. Tradução de Regiane Winarski. Rocco Jovens Leitores, 576 páginas, R$ 59,90
* Produzida por Bibiana Davila