Na Rua dos Alfeneiros, n° 4, um menino órfão dorme no armário embaixo da escada. Seus tios, os Dursley, são a família mais normal da Inglaterra e vão muito bem, obrigada. Ele, no entanto, é o bruxo mais famoso do Mundo Mágico. E, atualmente, do “mundo trouxa” também. Há duas décadas, todos conhecem seu nome: Harry Potter.
Em 10 de abril de 2000, a editora Rocco trazia às livrarias brasileiras o tal bruxinho, em Harry Potter e a Pedra Filosofal. O fenômeno editorial de J.K. Rowling, lançado originalmente em 1997, já somava então mais de 30 milhões de vendas em 35 países. Conquistando não apenas o público infantojuvenil, no Reino Unido a obra já se destacava em volumes em capa dura, voltados aos adultos.
Aos 11 anos — mesma idade do protagonista — Pedro Von Mengden Meirelles concedeu em 2000 entrevista a Zero Hora para falar sobre seu gosto pelo livro. “Ele estava protegido pelo amor da mãe”, explicou à época, sobre como na história um garotinho derrotou o temido bruxo das trevas, Lord Voldemort.
Em um mundo que tinha deixado o bug do milênio para trás, mas com a internet ainda engatinhando, a propaganda de livros corria do boca a boca. Para Pedro, a sugestão de ler Harry Potter veio de Vera Lucia Carniel, dona da Humanas Livraria, de Porto Alegre.
— A Vera tinha me sugerido antes O Senhor dos Anéis. Eu comecei a ler pelo prefácio, que resume toda a história criada pelo Tolkien, achei muito chato e desisti de ler. Aí que ela me indicou A Pedra Filosofal — recorda o leitor, hoje aos 31 anos e mestre em História.
Foi amor à primeira leitura. E não só pra ele. Em apenas nove meses, até dezembro de 2000, a Rocco informava que 350 mil exemplares do primeiro e segundo volumes (Harry Potter e a Câmera Secreta, lançado em agosto) haviam sido comercializados no Brasil.
O sucesso não foi efêmero. Em 2018, a Pottermore (empresa que administra os produtos da saga) anunciou que a saga de Harry Potter ultrapassara meio bilhão de livros vendidos no mundo, em 80 idiomas. Aqui, segundo a revista Veja, os livros de Rowling seguem entre os mais populares, ocupando nove das 20 posições do ranking infantojuvenil da última semana.
Agora, a Rocco se prepara para lançar uma edição comemorativa, em 30 de abril, já em pré-venda. O box, com os sete livros, soma 3.067 páginas e pode ser adquirido por R$ 449,50.
Iniciados na magia
Apesar das críticas à qualidade do texto de Harry Potter — a mais famosa assinada por Harold Bloom (1930-2019), que definiu a série como prejudicial aos leitores, em um artigo no The Wall Street Journal —, muitos jovens creditam à obra seu gosto pela literatura e fantasia.
— Douglas Adams, Neil Gaiman, Ray Bradbury, só para citar alguns, são autores de literatura fantástica que descobri na adolescência e sigo lendo muito — conta Pedro, que, com o passar dos anos, se afastou de Harry Potter.
Fabryce Scharlau, de 27, por sua vez, segue fã devota da série, que começou a ler quando tinha 12 anos:
— Foi minha entrada para o mundo da literatura, um mercado tão carente no Brasil. Hoje tenho uma estante repleta de livros. Torço pela literatura fantástica brasileira.
Mesmo novatos no mundo da bruxaria, como Clarisse Sallin, 16 anos, já começaram a desbravar outros campos da fantasia. Fã de Harry Potter, após terminar de ler a série — em algumas semanas! —, ela partiu para a saga Percy Jackson e os Olimpianos, de Rick Riordan.
— Acho que todo mundo deveria ler ou pelo menos ver os filmes de Harry Potter, ao menos uma vez — afirma.
Pensando nisso, os professores Jozi Klering, 32, que leu os livros há apenas cinco anos, e Tafarel Schmitt, 30, fã de longa data, participante de convenções sobre Harry Potter e dono de um cachecol da Grifinória (uma das casas da Escola de Magia de Hogwarts), tentam trazer um pouco da magia para as aulas na Escola Municipal Edvino Bervian, em Morro Reuter. Além de recomendar os livros, eles fazem brincadeiras com os alunos em sala de aula: alguém alto se torna o Hagrid, uma colega inteligente é chamada de Hermione, uma atitude arrogante pode render o título de Draco.
— Acaba virando “piadinha interna” entre os que leem. E, quando algum colega faz cara de desentendido, eles sugerem ler para se integrarem — explica Jozi.
Este apelo que a obra representa para públicos tão diversos, e que se mantém constante ao longo dos anos, foi estudado por Lisia Nunes na Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ela afirma que, apesar de a fantasia estar em primeiro plano, o que prende o leitor é a jornada dos personagens, que passam pelos embaraços que qualquer criança e adolescente precisa enfrentar.
— Apesar de todo aquele elemento mágico, de toda questão de castelos e bruxos, Harry ainda é um adolescente. Ele acaba passando por várias das coisas que a gente passa quando tem essa idade. É, antes de tudo, um romance de formação.