A criação literária é geralmente associada à concentração e ao isolamento. Por conta disso, é possível imaginar que os escritores não tiveram suas rotinas tão afetadas pelas medidas de distanciamento social, imposta com o avanço do coronavírus. Não é bem assim. Há, de fato, aqueles que estão aproveitando para se dedicar a projetos já iniciados, mas alguns foram impactados pelas notícias e mudanças no cotidiano, custando a retomar o trabalho com a palavra. E há também quem já se questiona como tratar da pandemia na sua ficção.
Abaixo, 12 escritores do Rio Grande do Sul contam o que estão escrevendo atualmente e avaliam como a quarentena tem influenciado seu trabalho.
Luiz Antonio de Assis Brasil
Com todos seus temores, o exílio doméstico a que nos obriga a pandemia pode e deve ser um momento de trabalho, reflexão, de leitura e, para quem é do ramo, de escrita. Não sou diferente. Dou aulas online, oriento, pesquiso e levo em frente uma novela musical, a que chamo de Leopold. Na música do período clássico, só há um Leopold digno de atenção: compositor e intérprete eminente na Europa Central, autor de um célebre método de violino, de sinfonias, trios, missas, serenatas, canções, sonatas para teclado, concertos. E pai de Wolfgang Amadeus. Refiro-me a Leopold Mozart. Publicou seu método no ano em que nasceu Wolfgang. Deixou de compor quando seu filho, aos cinco anos, começou a impressionar a corte do Príncipe-Arcebispo de Salzburg e, logo depois, todo o continente. Leopold dedicou-se por completo à formação do menino, que ele acreditava ser um milagre que Deus fizera acontecer, sendo ele, o pai, o responsável por cultivar e revelar esse milagre. Não explorou financeiramente o filho, como dizem. Ao contrário, gastou com ele o dinheiro que não tinha. Se o fez apresentar-se para as cortes europeias foi para que o jovem conseguisse um emprego e dele pudesse sobreviver. Tudo foi bem até que, numa noite, em Viena, Leopold escuta uma frase fantástica do velho Joseph Haydn, o maior compositor vivo. Esse é meu ponto de partida, a situação crítica que conduz a novela. A propósito, uma ficção contada em primeira pessoa, na voz de Leopold. Tenho pouca coisa escrita, umas 110 páginas. Terminará a quarentena e não a terei concluído.
Leticia Wierzchowski
Eu tentei lidar com este período da maneira mais organizada possível. Como meu trabalho passa justamente pelo olhar interior – pelo silêncio produtivo, concentração num universo paralelo de ficção – o isolamento não mudou minha relação com a escrita – para se escrever um romance, é sempre preciso isolamento.
Assim, usei esse tempo para finalizar meu livro Assim o Amor, romance inspirado na vida de Adelina Hess, uma mulher muito à frente do seu tempo – ela fundou a Dudalina e criou 16 filhos, uma vida louca de labutas e coragem, muito inspiradora, ainda mais nos momentos difíceis da vida. O livro vai sair pela editora Planeta. Se o covid deixar, ainda no segundo semestre desse ano.
Além disso, comecei a revisar a continuação de Sal, livro que se chama Deriva, ainda sem editora. Fiz uns roteiros também pra um projeto que estou montando com amigos.
Cíntia Moscovich
Estou embatucada há muito tempo com um romance. Quando o isolamento se impôs, pensei: vou ter tempo e silêncio para me dedicar. No entanto, as notícias são muito inquietantes e a concentração anda dificílima, sem contar que, para dar aulas, tive de me adaptar a essas ferramentas de videoconferência.
Agora, volto lentamente ao romance que escrevia, mas dentro de uma rotina que ainda estranho, com tanta máscara, álcool em gel, notícias cada vez mais apavorantes. Sabe o que é? Quem tinha razão, como sempre, é o Luiz Antonio de Assis Brasil, mestre da vida: para escrever, a gente precisa de paz.
Caio Riter
No início do isolamento, este tempo de não tempo me desorganizou bastante e me fez crer que as palavras estavam apartadas de mim. A concentração necessária para dar voz a novos personagens parecia algo raro. No entanto, nas últimas semanas, as palavras permitiram proximidades novamente. Acabei retomando projetos que estavam em latência: finalizei um novo texto infantil, em prosa poética, Dois Pinguins no Deserto, e me envolvi com a revisão de dois textos inéditos, O Sobrevivente, uma novela para adolescentes, que escrevi de forma manuscrita, já que pediu postura mais visceral no próprio ato de escrever. Também retomei um projeto de romance, Maré, o drama de um pai à procura de um provável filho.
Porém, o que mais tem me encantado é a produção de um texto a muitas mãos. Se escrever sozinho é desafiante, criar a partir de diferentes olhares e desejos abre um universo instigante na relação com as palavras, além de, neste tempo de fechamento, promover a abertura ao outro, à subjetividade do outro, aos recursos literários do outro. O ato egoísta da escrita precisa render-se a vontades já não apenas minhas. Assim, o livro que está surgindo, ainda sem título, terá autoria múltipla e tem como mote um evento surreal, que aprisiona algumas pessoas no interior do prédio em que moram. Fazem parte do grupo Seis + 1, além de mim, o Alexandre Britto, o Antônio Schimeneck, o Christian David, a Gláucia de Souza e a Laura Castilhos.
Carol Bensimon
Estou trabalhando em um romance novo há mais de um ano, mas o processo da escrita propriamente dito começou quase junto com a pandemia. Surpreendentemente, encontrei, a partir de meados de março, uma disciplina que não tinha há muito tempo. Talvez essa tenha sido minha maneira de manter um certo equilíbrio mental.
Há dias mais difíceis, quando fica evidente que morar em lugar isolado, cercado de natureza – vivo em Mendocino, Califórnia, desde 2018 – não faz com que você não seja afetado pelo mar de notícias e incertezas que brotam a cada minuto de todos os cantos do planeta.
A protagonista de meu romance é uma mulher chamada Cecília, nascida em 1978 em Porto Alegre. Durante os anos 80, seu pai é acusado de ter matado um homem com dois tiros de espingarda. Ambos eram deputados. Nos anos 2000, Cecília imigra para os Estados Unidos, onde começa uma promissora carreira como taxidermista, atuando sobretudo junto a museus de história natural. Acho que não devo dizer mais do que isso no momento.
Às vezes penso, como todos os escritores devem estar pensando agora, se haverá “traços” de pandemia em meu livro. Só o futuro dirá. Mas, em um livro que vai se construindo à medida que a degradação política e ambiental cresce, a influência parece inevitável, sobretudo porque esses dois temas – política e meio-ambiente – são fundamentais nesse romance.
LuÍs Dill
Impossível não ser afetado por uma pandemia de caráter tão catastrófico. E também me parece muito difícil dimensionar a dor provocada pela perda de tantas vidas. Mesmo em regime de teletrabalho e isolamento social desde março, minha rotina de escritor não foi afetada: ler, estudar, pesquisar, escrever, revisar. O desenvolvimento dessas atividades seguiu seu ritmo natural. Até houve acréscimo de tempo, pois economizo quase duas horas diárias de trânsito.
Em meio ao período da covid-19 escrevi duas novelas. A primeira é de realismo mágico para público adulto e a segunda é focada nas impressões de um jovem sobre a atmosfera macabra dos dias atuais. Os textos, começando por esse último, entram agora em processo de reescrita. E durante a quarentena em São Paulo, uma editora de lá aprovou a publicação de dois livros meus. Conforme eles, os textos entram em produção tão logo os contratos sejam assinados.
Destaco ainda que a pandemia cancelou o lançamento de Timbirupá (Editora Casa 29), romance adulto ambientado em 1930. O evento seria realizado em abril para marcar meus 30 anos de carreira literária. Por certo apenas um pequeno inconveniente frente aos terríveis efeitos da doença.
Celso Gutfreind
Penso que a epidemia interferiu até mesmo com a cara dos meus projetos. Tantas leituras e tentativas malogradas de entender o momento difícil levaram-me a priorizar a poesia, como forma de suportar a angústia decorrente disso tudo. E de ampliar o mundo, por dentro. Dito isso, estou trabalhando em dois livros, já bastante adiantados. O primeiro se chama Poema Azul – Ritmos e Memórias do Estádio Olímpico. Trata-se de uma parceria com o fotógrafo Luiz Eduardo Robinson Achutti, nos mesmos moldes de uma obra que fizemos juntos, há vinte anos, sobre uma tempestade que se abateu sobre o Bois de Boulogne, quando nós dois morávamos em Paris. Agora, faço um poema, e ele, fotos sobre as ruínas do Estádio Olímpico e o quanto são plenas de memórias afetivas compartilhadas.
O segundo livro é um solo de poemas (avisei que estava com muita necessidade de fazer poesia), chamado A Arte Que se Baste. Andei lendo muito sobre a teoria da arte para um livro de ensaios, publicado em 2018, chamado A Arte de Tratar. Ali desenvolvia noções sobre os aspectos estéticos da psicanálise. Alimentado de todas aquelas leituras, eclodiu agora, na pandemia, o desejo de depurá-las em poemas, sem compromissos com conceitos e sim com ritmos para me embalar. Há versos sobre a poesia, sobre a narrativa, sobre as palavras em si. Arte de arte, enfim, consolando-me à espera de que possa passá-lo adiante, quando tudo isso terminar.
Simone Saueressig
No início do confinamento, tentei manter um diário no meu blogue, mas eu não tenho essa constância. então me voltei para outros projetos. No momento, estou preparando material que pretendo submeter a um projeto de disseminação da literatura o Pegaí Leitura Grátis, do Paraná. E finalmente estou revendo meu material de pesquisa para colocar em prática um romance de dark fantasy passado em Porto Alegre. Já tenho várias ideias em andamento, mas falta colocar no papel. E é claro que a questão da pandemia irá influenciar a história. A situação atual é tão parecida com uma distopia, que é possível que uma dark fantasy não vá parecer tão disparatada assim.
Por outro lado, competir com a realidade está muito difícil. Quem poderia imaginar que no mesmo dia em que a primeira nave espacial comercial subiu ao espaço, num procedimento perfeito, cá embaixo haveria protestos contra o racismo, nos EUA, que parecem saídos de algum filme distópico de ficção científica? Estamos vivendo dias de extremos, é uma situação incrível! Eu me sinto totalmente sobrepujada pelo “roteiro 2020”.
Airton Ortiz
Eu estava em Israel fazendo a Trilha de Jesus, uma caminhada de 80 quilômetros entre Nazaré e o Mar da Galileia, quando fui pego pelo início da pandemia, tendo que deixar o país às pressas. A expedição foi interrompida e o livro ficou para uma próxima viagem. Em casa, hibernando desde 18 de março, retomei o projeto de um romance de aventura que estava adormecido, pois para escrevê-lo ─ pelo menos em parte ─ não preciso sair do meu estúdio.
Marfim vai contar a história do contrabando de marfim rosa, o mais valioso do mundo, retirado dos elefantes anões que vivem nas florestas do interior de Gana, na selvagem costa oeste da África. Após matá-los, os traficantes levam as presas para Nairóbi (no outro lado do continente), onde embarcam para Bangcoc. Na capital tailandesa, hábeis artesões lhes dão forma de joias. Entram na Europa por Amsterdam e vão parar nas refinadas joalherias de Paris, e dali se espalham pelo mundo, em especial Nova York, Londres e Porto Alegre. Os compradores das estatuetas decoram suas belas casas com tal raridades e depois vão para a rua marchar em protesto contra a destruição da natureza, da vida selvagem e o aquecimento global.
Como o meu projeto literário é ambientar histórias, mesmo que fictícias, em lugares onde conheço, só me falta visitar as aldeias no interior de Gana para completar o livro. Enquanto isso, amplio a pesquisa e escrevo os capítulos que se passam nas outras cidades. E sonho com o final da história ─ que será o começo do livro.
Anna Mariano
A pandemia me pegou em pleno processo criativo. Estou escrevendo sobre uma família de italianos plantadores de soja. São quarenta anos na vida dessa família. Preciso não só inventar a história, mas conhecer o temperamento, o jeito de falar e de agir, os amores e os desamores de cada personagem. Nada pode acontecer a eles que eu não saiba. Deus não criou o mundo pensando nas Suas dores e, para meus personagens, nos limites do meu livro, sou uma espécie de deus, assim, quando sento pra escrever, o mundo onde vivo precisa desaparecer. Isso é bom, mas exige disciplina. Muita. Atrás da minha cadeira, olhando por sobre o meu ombro, há sempre uma ameaça, que preciso manter sob controle. Talvez o fato de estar escrevendo sobre um ciclo, o ciclo da soja, me tenha dado uma perspectiva otimista: tudo passa, as coisas mudam, a gente se adapta. Embora eu já trabalhasse em casa, o confinamento me colocou também em home office, uma espécie diferente de home office, muito fácil de desandar para o ócio. O segredo tem sido dividir o dia em horários rígidos: trabalho, exercício, diversão (família, livros e filmes). Seguindo um costume da infância, troco de roupa para o jantar, uma forma de manter a autoestima.
Samir Machado
Tem sido difícil manter a sanidade nessa combinação de pandemia com crise política, mas por sorte, eu já vinha finalizando um projeto, de modo que dar retoques é mais fácil do que criar do zero. No caso, um romance histórico de batalhas, sobre a invasão de Portugal no século 18 durante a Guerra dos Sete Anos, sob a ótica de um soldado brasileiro, intitulado Homens Cordiais. Embora eu tenha escrito para funcionar de modo independente, retomo vários personagens de um romance anterior, Homens Elegantes. É um capa-e-espada tradicional, com duelos, heroísmos e espionagem, minha pequena homenagem à Alexandre Dumas, Bernard Cornwell e Arturo Perez-Reverte. A trama segue uma conspiração real, entre militares e aristocratas portugueses que se denominavam A Confraria da Nobreza, e que, insatisfeitos com mudanças sociais ocorridas durante o governo do Marquês de Pombal, estavam dispostos a entregar o reino a nações estrangeiras se assim pudessem se livrar do rival político e manterem sua posição de privilégio. Puro escapismo, como se pode ver. Deve sair pela Rocco no primeiro semestre de 2021.
Natalia Borges Polesso
Parece que tudo o que escrevo atualmente é rascunho. Eu tenho tentado equilibrar a vida criativa e os outros trabalhos, mas não tem dado certo. O momento é de aproveitar o desequilíbrio, ao menos é o que tenho feito. Se algo me faz pender, imediatamente, me jogo, se isso será algo no futuro (que futuro?), eu não tenho como dizer. E é sobre isso que tenho escrito, sobre o futuro a partir desse presente que estamos tentando compreender, sobre as tentativas diárias de manter a saúde mental, sobre o querer estar presente e ter que descobrir outros meios, sobre estar vulnerável e sobre compreender as coletividades. Tenho escrito sobre isso. E sobre a vontade de sonhar e não conseguir. Tudo isso é um projeto de livro, sem forma ainda, que está muito mais na minha cabeça do que no papel.
Do que já está no papel, estou fazendo a revisão final de um romance que terminei de escrever em 2019, dando aquela última cortada no que é desnecessário. O romance é sobre colapsos. Venho pensando nisso há tempos. E mesmo tendo escrito dois livros sobre fins de mundo. Nada me preparou para este que estamos vivendo.