Paul Beatty fez história há três anos quando se tornou o primeiro escritor americano a ganhar o Man Booker Prize, prestigiado prêmio inglês de literatura. O livro que garantiu a façanha é uma espécie de decantação de um estilo que Beatty maturou ao longo de uma carreira de 20 anos e quatro romances: uma comédia vigorosa, iconoclasta, inteligente e com a força de uma bomba a espalhar estilhaços em todas as direções. Paul Beatty é um escritor negro que escreve livros profundamente políticos sobre racismo, mas que também são obras de um brilho e uma leveza que só as sátiras mais agudas conseguem. Boa parte dessas características podem ser vistas, em um tom ainda mais selvagem, neste Slumberland, romance de 2008 que, na esteira do sucesso do autor, convidado da Flip em 2017, ganha sua primeira edição no Brasil.
Slumberland narra a história de Ferguson Sowell, DJ e compositor que, dotado de uma "memória fonográfica" capaz de lembrar de todos os sons que já ouviu, ganha a vida fazendo trilhas sonoras para filmes pornô. Ao mesmo tempo, compõe o que considera sua magnum opus, uma batida alucinante de 2,47 minutos mixada de sons e samplers aleatórios como "o chiado da jaqueta de couro de Marlon Brando em O Selvagem, um carrinho de supermercado tombando na margem de concreto do Rio Los Angeles, Mothers of Invention, uma pedra roçando a superfície do lago Diamond, os cílios de Paul Newman durante uma piscada amplificada dez mil vezes" e por aí vai. Os amigos de Ferguson são unânimes em dizer que é a batida quase perfeita, mas o compositor quer mais, ele quer ser referendado por seu maior ídolo, Charles Stone, o Schwa, um lendário jazzista negro que está desaparecido há 25 anos. Até que um envelope com uma fita de um (claro) filme pornô com uma trilha psicodélica põe Ferguson na pista do eremita, na Berlim dos últimos dias do muro e nos corredores cheios de areia do bar Slumberland "se o sujeito é negro, ele vai aparecer aqui mais cedo ou mais tarde", diz a Ferguson a garçonete alemã Doris, e ele decide esperar por ali.
Beatty estreou na literatura com The White Boy Shuffle (1996), um libelo pós-moderno sobre como a cultura hip-hop e a própria identidade negra nos Estados Unidos são tomados como sinônimo, e o quanto isso pode ser ao mesmo tempo enriquecedor e empobrecedor. Publicado mais de 10 anos mais tarde, quando o hip hop já era um fenômeno maistream, como ainda é em boa parte da indústria musical americana, Slumberland (nome que significa "terra do sono" e homenageia uma obra seminal dos quadrinhos, Little Nemo in Slumberland) é uma revisão radical, mas não menos aguda, de temas do primeiro livro ("nós, os negros, que já fomos uma eterna modinha, o povo que já foi tão atual quanto a Hora de Greenwich, de hoje em diante somos tão antigos quanto ferramentas de pedra", diz o iconoclasta Ferguson logo no início do livro).
O que faz Slumberland uma obra maiúscula, contudo, é ser mais do que uma sátira a negros brancos, americanos, alemães, europeus, à comercialização da arte. É ser também uma árdua demonstração de amor à arte.
Slumberland
De Paul Beatty.
Tradução de Rogério W. Galindo. Todavia, 272 páginas, R$ 64,90 (papel) e R$ 39,90 (e-book).