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"Tudo começa no ano 1900, com o choro de um recém-nascido, e termina cem páginas depois, no ano 2000, com os últimos suspiros de um homem de 100 anos", informa a contracapa de O Dia de Julio. Uma mente cartesiana seria levada a acreditar que cada página corresponde a um ano na vida do protagonista e na história do século 20. Mas lógica nunca foi a praia de seu autor, o americano Gilbert Hernandez.
Nascido em 1957, o quadrinista californiano de origem mexicana bebe do realismo mágico de romancistas latino-americanos como Gabriel García Márquez e do cinema onírico de Federico Fellini. Seus personagens, embora não raro reflexivos, alguns até introspectivos, movem-se guiados pelas urgências do corpo. São sanguíneos como se estrelassem uma telenovela exagerada com um quê de pornô soft.
Na juventude, Beto, como é chamado, e seus irmãos Jaime e Mario deliciavam-se com a explosão e a espontaneidade da cena punk rock de Los Angeles. Em 1981, lançaram a Love and Rockets, revista em preto e branco que misturava ficção científica com o retrato do cotidiano da garotada que formava a plateia de bandas como X e Black Flag.
Meio despretensiosamente, meio ambiciosamente, os Hernandez mandaram um exemplar para a Comics Journal, um dos principais periódicos críticos de quadrinhos nos Estados Unidos. Caíram nas graças e acabaram convidados a publicar seu fanzine pela Fantagraphics, a editora do Comics Journal. Inspiraram toda a cena dos gibis underground americanos, a exemplo do que a Zap, de Robert Crumb, fizera na década de 1960. É possível identificar o legado da Love and Rockets nos trabalhos de Daniel Clowes e Adrian Tomine, entre outros expoentes.
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Ainda nos anos 1980, dentro da mesma revista, Beto criou sua própria Macondo, a cidade fictícia em que García Márquez encenou o clássico Cem Anos de Solidão (1967). O escritor colombiano, vale lembrar, havia aumentado sua fama naqueles tempos, ao receber o Prêmio Nobel de Literatura em 1982. Em Palomar, o quadrinista fundiu suas referências aos gibis românticos juvenis, como Archie, e ao comentário sociopolítico que sempre pautou seus predecessores, como Crumb e o xará Gilbert Shelton. Deu à luz uma série de personagens femininas memoráveis, como a destemida – e mãe de muitas – Luba, a parteira Chelo, depois xerife da cidade, a estonteante Tonantzin, que evolui de aspirante à estrela de Hollywood a ativista política, e a desejada Pipo, que consegue se livrar de um casamento abusivo com um homem violento para se transformar em uma empreendedora de sucesso. Duas obras recentes no Brasil compilaram HQs dessa época, Sopa de Lágrimas (2016) e Diastrofismo Humano (2017), ambas lançadas pela Veneta.
O Dia de Julio, publicada originalmente em 2013 e agora editada no Brasil pela Nemo (114 páginas, R$ 44,90, com tradução de Jim Anotsu), não se passa em Palomar, mas sua cidade sem nome é herdeira direta daquele universo ficcional. O leitor de Sopa de Lágrimas e Diastrofismo Humano, contudo, perceberá diferenças significativas. Estão lá o protagonismo difuso, a mistura do fantástico ao banal, do lirismo à brutalidade, a promessa e a negação do sexo, a perscrutação do íntimo humano, daquilo que nos iguala independentemente de bandeiras e fronteiras, sopesada pela relação do indivíduo com o seu entorno, sua geografia, sua herança cultural, seu lugar na sociedade e na política. Mas a narrativa por vezes desbragada, com texto caudaloso, deu lugar à contenção e às elipses. As mulheres, tão presentes e poderosas, cedem a frente do palco para homens que refutam esse protagonismo. Em sua maioria, são frágeis, omissos, covardes ou mesmo pusilânimes. Uma exceção será Julio Juan, radiante como o progresso, a diversidade e a tolerância.
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Julio abre e fecha o livro, mas está mais para eixo gravitacional do que para astro-rei. Volta e meia sai de quadro, enquanto Hernandez foca nos demais personagens: Juan, o tio que, muito provavelmente, abusa de crianças; Sofia, a irmã que tem uma paixão platônica por um vizinho; o pai de Julio, infectado por um verme azul durante uma viagem; Tommy, o amigo com quem Julio tem uma ligação que parece ser de outra natureza. "Muito provavelmente", "que parece ser": as coisas não estão às claras na HQ. O autor prefere deixar lacunas para que o leitor complete ou mesmo imagine. À primeira vista, como no caso do tio Juan, o artifício pode soar inútil e até irritante. Porém, não explicitar aqueles pecados acaba por espelhar o silêncio com o qual muitas famílias os enfrentam (ou não enfrentam). No caso de Julio e Tommy, estabelece o conflito psicológico dos personagens e ilustra a repressão sexual e o preconceito.
Os não ditos, as meras alusões, são empregados também no painel do século 20 traçado por Beto. Nesse pano de fundo histórico, a estratégia se mostra mais arriscada. Como dito anteriormente, as cem páginas não correspondem exatamente aos cem anos do personagem e do século passado. Alguns episódios se resolvem em um par de cenas, outros avançam por mais páginas. Ainda que a trama siga uma cronologia em linha reta, de 1900 a 2000, ficamos um tanto perdidos tentando saber em que época estamos, tateando nas referências a fatos como a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, a quebra da Bolsa de Valores de Wall Street em 1929, a luta pelos direitos civis dos negros, o Vietnã, a aids. É como se um século transcorresse na velocidade de um dia (o dia de Julio): só olhando para trás é que vamos apreender o que passou.
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O final da HQ acrescenta um sentido mais particular a seu título e reforça a ligação da obra de Gilbert Hernandez com Gabriel García Márquez. Sobrinho-neto de Julio, Julio Juan não faz segredo de que dorme com homens e entende o sofrimento calado de seu tio-avô.
— Eu me permiti ter o meu dia ao sol, Julio. Permita-se ao seu!
— Eu não sei do que você está falando — responde, laconicamente, Julio.
Um par de páginas depois, o ancião suspira por Tommy e se recosta na árvore que marcara a infância dos dois. Banhado pelo sol, Julio reconcilia-se consigo mesmo. Está pronto para morrer, nos braços de sua mãe supercentenária (tal qual a Úrsula do célebre romance de García Márquez), que testemunhou os cem anos de solidão do filho.