Consagrado como um dos mais importantes nomes da literatura brasileira contemporânea, Milton Hatoum volta às livrarias nesta semana com um novo romance. O manauara quebra uma pausa de quase uma década sem lançar narrativas longas – a novela Órfãos do Eldorado foi publicada em 2008.
Em A Noite da Espera, Hatoum retorna a um tema que marca Dois Irmãos (2000), premiado sucesso editorial que se tornou série da Globo no ano passado, e é central em Cinzas do Norte (2005): o regime militar instituído pelo golpe de 1964. Desta vez, Hatoum desloca o foco de Manaus para Brasília, onde o protagonista Martim tenta se enturmar depois de sair de São Paulo com o pai, recém divorciado de sua mãe. O jovem acaba se envolvendo com a criação de uma revista literária e com a resistência aos militares, mas o cerco se fecha sobre ele e seus amigos.
Apesar do destacado cenário político, Hatoum afirma que este é um romance de formação, tendo como cerne o desenvolvimento de Martim de menino a adulto. O novo livro faz parte da trilogia O Lugar Mais Sombrio, que já está com os dois outros tomos finalizados, sem data de lançamento.
De São Paulo, onde mora atualmente, Hatoum conversou por telefone com Zero Hora. Na entrevista, o autor conta como foi o processo de criação do romance, opina sobre o papel da literatura e fala sobre a ascensão do conservadorismo na política brasileira.
A Noite da Espera abre a trilogia de romances O Lugar Mais Sombrio. Como esse projeto foi estruturado?
Comecei pelo terceiro volume, que é um pouco deslocado dos dois primeiros. Esse romance de encerramento é todo ambientado na França, narrado por uma franco-brasileira que surge no segundo volume. Terminei a terceira narrativa em 2011, e só o Luiz (Schwarcz, editor da Companhia das Letras) leu o manuscrito, porque ainda estava meio cru e queria mostrar para alguém. O Martim aparece nesse texto, e o Luiz escreveu à margem do manuscrito: "Dá vontade de conhecer a história desse personagem". Pensei nisso e, para escrever a história do Martim, levei cinco anos. Foi apenas uma observação do Luiz, mas provocou um questionamento e uma revisão sobre o que eu estava escrevendo.
O Martim então se tornou o protagonista desse primeiro livro.
Tinha certa apreensão de entrar nesse mundo do Martim. Ali está minha experiência de Brasília e de São Paulo, mas não queria escrever nada autobiográfico. Queria fugir disso, como fiz nos outros romances, então deu muito trabalho fabular essa história. Isso só aconteceu quando encontrei uma forma de narrar fragmentária, com anotações, saltos temporais, cartas. De cara, percebi que não poderia narrar como nos meus outros romances. Não queria fazer um romance estritamente político, sobre o jogo do poder, dos militares, das forças à direita e à esquerda. Afastei isso logo de cara. Esse modo de narrar se impôs pela minha experiência de vida. O fio da narrativa é o próprio fio da vida, mas são fios sinuosos, com quebras, nós, interrupções. A ideia do fragmento faz referência a essa vida que parecia não ter continuidade, interrompida o tempo todo pela presença da polícia na escola, pela expulsão de colegas, pela prisão, pela ameaça, pelo amor descontínuo.
Apesar de não ser um livro autobiográfico, sua experiência de vida em São Paulo e Brasília ficam evidentes.
Tive essa experiência em Brasília, porque fui viver lá com dois amigos. Me afastei da família e de Manaus com 15 anos. Não foi um rompimento familiar, mas queria estudar Arquitetura, e Brasília nos fascinava naquela época, o projeto da cidade, a ideia. Fiz um exame de admissão e entrei em um colégio de aplicação que foi criado por Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira. Era um colégio de ensino médio, mas ficava na entrada do campus da UNB. Era um laboratório incrível de artes e tudo mais. Testemunhei as invasões policiais ao campus. A solidão e a separação da família eram difíceis. Eu me refugiava muito no quarto onde morava, primeiro com esses dois amigos, depois sozinho. Foi uma vida um tanto amargurada ali, mas também uma época de maturidade na marra. Naquela cidade árida e violenta, a maturidade veio em um empuxo. Por isso pensei em um romance de formação. Há um percurso dos personagens, uma caminhada pela vida, em um ambiente desagregado e violentíssimo.
A Noite de Espera poderá ser encarado por muitos como uma narrativa de cunho político, apesar de ser um romance de formação. Se passa em Brasília, em pleno regime militar, e expõe os jogos de poder daquele momento. O atual cenário da democracia brasileira também pode colaborar para esse tipo de leitura?
Sim, os primeiros leitores da editora imediatamente perceberam essa projeção no presente. Mas o romance começou a ser escrito há seis anos, quando no Brasil ainda havia um otimismo, uma esperança enorme. Às vezes a ficção, que é uma reinvenção do passado, se rebate no presente. Foi totalmente involuntário. Não esperava que um dia haveria um impeachment, mesmo que o governo Dilma tenha sido desastroso em vários aspectos. Não sou um visionário. A ficção talvez tenha esse poder. Mas não podia imaginar que as coisas fossem se degradar dessa maneira.
O jogo político de hoje se parece com o da época retratada no romance e vivida pelo senhor?
O jogo insidioso da política tem traços comuns. Inclusive alguns políticos daquela época ainda estão aí, ou filhos dele. A linhagem autoritária e mais insidiosa está aí, dos políticos que vieram da antiga Arena e do MDB.
Fernando Collor de Mello faz uma ponta no seu romance (o personagem Manequim tem história familiar semelhante à do senador, embora o nome do alagoano não seja citado), não é verdade?
Você percebeu (risos)? É que ele foi meu colega no Centro Integrado Ensino. Ele era do terceiro colegial, e já desfilava no Itamaraty. Como diria Borges, ele já tinha encontrado seu destino. O romance tem algumas referência a políticos daquela época, mas poucas.
Os conflitos entre os personagens levantam a discussão do papel das artes e da literatura diante de cenários políticos turbulentos, como a virada dos anos 1960 para os 1970, mas também do Brasil atual. Ao final, a sensação é de que a arte não pode ser limitada ao caráter denuncista, mas também não pode ficar alheia à realidade em que está imersa. É nesse equilíbrio que o senhor constrói sua literatura?
Sim. A literatura é tão complexa que pode falar das relações sociais e políticas de uma forma oculta, insinuada. Sempre busquei um equilíbrio entre ação e reflexão, entre fatores externos e internos, entre a psicologia das personagens e a realidade do mundo representado. Isso você vê na obra do Conrad, ou nos romances mais históricos do Erico Verissimo, por exemplo. Erico tem esse controle. Parte de um quadro histórico muito definido, mas cada personagem fica em pé ali, tem sua complexidade. Isso dá muito trabalho. Gosto daquela posição do Hegel, que afirma que o romance é o conflito da poesia do coração com as relações sociais degradadas. Quis unir o sentimento de perda do Martim, do seu amor pela mãe e pela namorada, no meio dessas relações sociais.
Martim e sua turma montam uma revista literária e acabam sendo perseguidos pelo regime sem motivo muito claro. E um cerco de brutalidade os apanha. Atualmente, os artistas não passam pela ameaça de violência física da ditadura, mas têm peças de teatro canceladas e exposições fechadas depois de ataques em redes sociais. São dois momentos similares?
A violência de Estado atual não se compara com a ditadura e com a censura. Você simplesmente não poderia publicar nossa conversa naquela época. Certamente estaríamos grampeados ou ameaçados. Mas há uma ascensão da extrema direita. Diria até mesmo que há uma ascensão do fascismo. Acho espantoso como grupos neonazistas se manifestam livremente. O que está por trás disso é um projeto autoritário de poder. Isso é perigosíssimo. E acho de um cinismo e de um oportunismo enormes a posição dos prefeitos do Rio e de São Paulo em apoiar essas censuras. O Doria condenou a performance no MAM. A mulher dele se diz artista. Isso é de uma cretinice perigosa, no mínimo. As coisas podem caminhar para um lugar mais sombrio, para usar o título da série. Doria, há poucos dias, declarou que receberia o apoio do Bolsonaro no segundo turno. A opção da direita brasileira é pelo obscurantismo. Há uma tendência obscurantista, mas se você perguntar se estamos em uma ditadura, responderia "não". E não gostaria de responder "ainda não".
A NOITE DE ESPERA
De Milton Hatoum
Romance, Companhia das Letras, 240 páginas, R$ 39,90.