Índio bom é aquele que não incomoda. Essa foi a principal diretriz de sucessivos governos brasileiros, antes e depois do regime militar, nos últimos 60 anos, a se julgar por milhares de documentos e depoimentos acumulados nesse período.
O doloroso resultado dessa política é o tema central de Os Fuzis e as Flechas, livro lançado recentemente pelo jornalista Rubens Valente. Foram 26 anos de pesquisas, condensadas em 518 páginas, que relatam uma rotina de transferências forçadas, prisões e mortandade indígena, praticadas com conhecimento e até orientação oficial.
– A retirada desses grupos étnicos, quando surgisse algum empecilho ou eventual transtorno para determinada região, era uma política do Estado. Foi assim com a Transamazônica (rodovia que corta o Brasil de leste a oeste, na Amazônia), com a Belém-Brasília, com as usinas como Tucuruí. Povos inteiros foram removidos para essas grandes obras – resume Valente, que é repórter do jornal Folha de S.Paulo e hoje vive em Brasília.
As remoções significavam morte, para grande parte dos nativos. Isso porque gripe, tuberculose, conjuntivite e outras infecções grassavam entre eles, despidos de imunidade contra doenças comuns aos brancos. Diante da necessidade de cortar a selva com uma estrada, sobretudo na Amazônia, os militares não hesitavam em determinar marchas forçadas dos nativos, dezenas de dias mato adentro. Eram caminhadas nas quais escasseava a comida e esvaía-se a saúde.
Como admite, nesse trecho do livro, um servidor da Fundação Nacional do Índio (Funai) entrevistado pelo autor: "Os índios caíam como moscas no caminho. Deitavam e não mais levantavam. Não tinham nada para comer. No primeiro dia o rancho (comida) acabou. Eles passaram a se alimentar de nada... E furando a mata, para chegar logo. Eles sabiam que, chegando lá, no Ipixuna, tinha roça, dava para fazer farinha. Mas os índios foram já doentes para a barranca do rio. Eles paravam, o Assis voltava para pegar. Ele carregava criança no colo, porque a mãe não aguentava mais... Foi erro de planejamento. Não era para ter tirado os índios dali".
Esse relato especificamente aborda a remoção forçada de 73 araweté nas proximidades do Rio Xingu, no sul do Pará, em 1976. Isso equivalia 36,5% de toda a etnia, na época. Ela praticamente desapareceu.
Valente convive desde criança com índios. Com a infância no Mato Grosso do Sul, morava ao lado de uma aldeia guarani-kaiowá. A miséria dos indígenas transformados em pedintes sempre o chocou. Daí a decisão de pesquisar sobre o tema e realizar entrevistas, nos intervalos entre uma e outra cobertura política do país.
O subtítulo do livro mostra o ponto em que o autor decidiu focar: História de Sangue e Resistência Indígena na Ditadura. Seria difícil tentar resumir os 500 anos de dizimação da população ameríndia numa única obra. O jornalista optou, então, por relatar o que ocorreu com centenas de tribos no período que vai do início dos anos 1960 a meados dos 1980.
Entre os pontos pouco conhecidos da história, resgatados por Valente, estão as prisões e as milícias indígenas. Sim, havia cadeias apenas para índios, criadas em regiões com densa população nativa. Castigos físicos e humilhações eram rotina nesses lugares, como detalha o texto do livro. Era comum que guaranis e caingangues, inclusive no Rio Grande do Sul, ficassem amarrados ou até acorrentados em cárceres, sob a vigilância de servidores e policiais de origem indígena ou brancos.
Havia uma milícia chamada Guarda Rural Indígena, formada exclusivamente por índios, para lidar com outros índios. Tinha formação militar, uniforme e, como comprovam fotos obtidas por Valente, também aplicava torturas aos presos. Tudo no espírito da ditadura militar.
A meta oficial do regime militar, inspirada em Cândido Rondon, o primeiro a montar no Brasil uma política de preservação das etnias indígenas, era integrar os índios – o lema de campanhas era Integrar para Não Entregar, numa referência à imensidão verde cobiçada por estrangeiros. Só que distância entre o discurso e a prática era grande. Não houve respeito pela vontade de algumas etnias em permanecerem isoladas.
O conflito entre os ideais e o pragmatismo ficava mais agudo à medida que hidrelétricas e rodovias avançavam pela mata. Conforme Valente, os índios eram tratados como objetos que poderiam ser transferidos a qualquer momento. Retiravam-se grupos inteiros de um local, sem contato prévio com eles. A Funai tentava, mas nem sempre conseguia convencer os índios a sair, inclusive pelas dificuldades de comunicação.
Em muitos casos, os índios resistiram ao avanço da civilização urbana, e o resultado foram alguns massacres notórios. Entre as vítimas dessa guerra não estão apenas os indígenas, mas também padres, missionários, peões de obras e servidores governamentais.
Os índios foram os mais atingidos. Entretanto, suas populações aumentaram nas últimas décadas: o censo de 1957 apontava a existência de 70 mil indígenas no país, número que passou para cerca de 400 mil nos anos 2000. Só que, consequência do desequilíbrio e da falta de uma política mais consistente de preservação, dezenas de idiomas morreram e tribos inteiras foram incorporadas à força ao modo de vida branco, deixando seus costumes e culturas para trás. O resultado, como se pode ver nas estradas brasileiras, é a miséria. Uma história resgatada com toda sua crueza no imprescindível livro de Rubens Valente.
Entrevista
Rubens Valente, autor de Os Fuzis e as Flechas
A decisão de escrever um livro sobre o desastre da polÍtica indígena brasileira veio da convivência que você teve com os guaranis na infância?
Conheci índios aos 12 anos, em Dourados, para onde minha família se mudou vinda do Paraná. Mas a decisão de escrever o livro veio bem depois, quando virei repórter no Mato Grosso do Sul e no Mato Grosso, a partir de 1989. Pude conhecer, creio, mais de 40 terras indígenas ao longo dos anos 1990. Nessas viagens, comecei a coletar referências bibliográficas, histórias e fontes humanas. Depois, ao longo dos anos 2000, embora meu foco de trabalho tivesse se virado para outros temas, como corrupção de agentes públicos e desvio de dinheiro público, continuei pesquisando e acumulando documentos sobre os indígenas. Em 2012, fui contatado pela professora de história da UFMS Heloisa Starling, que é a curadora da coleção Arquivos da Repressão no Brasil da editora Companhia das Letras. A partir do convite dela, fiz mais de 80 entrevistas e viagens para uma dezena de terras indígenas, em 10 Estados.
Houve dificuldades para obter os dados oficiais?
A maior dificuldade ocorreu no acesso aos documentos do braço do extinto SNI na Funai, a Assessoria de Segurança e Informações, ou ASI. Até 2012, a legislação em vigor não permitia a consulta dos chamados "dossiês pessoais", que são pastas produzidas pela ASI sobre servidores, indígenas e antropólogos. Até então se podia olhar os dossiês sobre organizações não governamentais, por exemplo, mas não sobre pessoas – o que só mudou a partir da Lei de Acesso à Informação, que coincidiu com um pedido que fiz junto ao Ministério da Justiça e que enfim foi acolhido. A decisão de escrever o livro, no fundo, veio das histórias que chegaram ao meu conhecimento ao longo dos anos e da necessidade que me impus de relatá-las. Entendi que a bibliografia sobre o tema ainda não havia de modo algum esgotado o assunto, pois os principais livros sobre a ditadura muitas vezes nem citavam o impacto da política dos militares sobre os indígenas. O que aconteceu nas terras indígenas de 1964 a 1985 continua sendo um assunto em larga medida ignorado nos livros de história.
Por que houve esse desastre da política dos militares em relação aos índios
Comparo o que houve no período da ditadura a um motorista bêbado que sai guiando de modo perigoso e vai atropelando e matando as pessoas. O homicídio pode não ter sido doloso, mas foi culposo, pois o Estado assumiu o risco de ir ao encontro desses índios sem possuir as condições necessárias básicas de saúde. O Estado agiu de forma a causar uma alta mortalidade entre diversos grupos indígenas pela sua inoperância, arrogância, despreparo e ausência de sensibilidade. Já naquela época se sabia que o organismo dos índios não contatados constituía um território aberto para doenças trazidas pelos ditos "civilizados". Mesmo assim, pouco ou nada foi feito de forma antecipada para se precaver dessas doenças, conforme demonstram os documentos e os depoimentos que recolhi junto a servidores da Funai. Na abertura de grandes rodovias, em especial a Transamazônica, as obras ocorriam ao mesmo tempo em que as equipes estavam tentando contatar esses grupos indígenas, o que provocou uma pressa, um estresse, que levou à alta mortalidade. Mas é preciso ressaltar: esse tipo de política, embora tenha se intensificado e se agravado durante a ditadura, não foi inventado naquele momento. Outros episódios semelhantes se sucederam ao longo da história antes de 1964.