Se é fato que todas as vidas sofrem as consequências de seu tempo, em algumas delas as ondas de choque da História doem mais do que em outras. Nesse sentido, a vida do escritor Lima Barreto (1881 – 1922) é um retrato contundente do entrechoque das forças que moldaram o Brasil em que ainda vivemos. Negro, combativo, ácido contra as hipocrisias da sociedade em que vivia – em que teorias racistas supostamente científicas tentavam manter o apartheid até então naturalizado pela escravidão – Lima foi um autor que sofreu pelo seu projeto literário, todo ele muito consciente. É essa a interpretação oferecida pela historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz em Lima Barreto: Triste Visionário (Companhia das Letras, 656 páginas, R$ 69,90 impresso e R$ 39,90 em e-book), biografia do autor lançada há poucas semanas.
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Fruto de uma pesquisa de 10 anos, a biografia pretende trazer para o centro da vida de Lima um assunto que ele próprio tirou do pano de fundo do Brasil de seu tempo: o racismo nem sempre velado de cada dia
– Penso que a gente faz uma biografia para lidar com um personagem porque ele tanto representa o seu momento quanto tem singularidades que devem ser desatacadas. E o Lima Barreto representa uma história do nosso país, um projeto e uma face difícil do nosso país, que promete tanta inclusão social e cujos dados até hoje mostram a evidência da exclusão não apenas racial, mas de várias faces da população – diz Lilia (leia entrevista com a autora aqui).
Lima Barreto: Triste Visionário, faz um apanhado que entremeia a vida do escritor Afonso Henriques de Lima Barreto com as circunstâncias históricas de seus breves 41 anos de vida: a abolição, o fim do Império, a ascensão da República, a ditadura militarista que marcou os primeiros governos do regime republicano, e como cada um desses momentos impactou a vida de Lima. O livro também mapeia os usos que o autor faria em sua ficção de episódios da própria biografia, como a passagem pelo serviço público, a formação de seus pais, negros libertos e com formação profissional, até suas próprias crises de alcoolismo.
INCONFORMADO E
DESCONFORTÁVEL
Após perder a mãe aos seis anos de idade e largar o curso de Engenharia na prestigiada Escola Politécnica, Lima se tornou funcionário público amanuense para sustentar o pai doente (insano e alcoólatra) e os irmãos menores. A partir daí, foi cavando espaço na República das Letras brasileira (expressão que ele cunhou), sempre como um elemento pouco confortável pela acidez de sua pena satírica, sensível como um sismógrafo às máscaras da sociedade brasileira – mesmo que algumas das ambivalências fossem as do próprio "Lima", como era chamado em seu tempo.
– O Lima tinha um projeto literário considerado "desagradável". Era um autor que atacava a República sem dó nem piedade. Há trechos dele que são de uma atualidade impressionante. Na questão racial, ele pega um plano que fazia parte dos fundos, do segundo plano, dos bastidores e o transforma numa questão central – diz Lilia.
Autor homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty (flip) deste ano, Lima terá boa parte de sua obra reeditada por mais de uma editora. A Companhia das Letras deve pôr nas livrarias ainda este mês novas edições de Impressões de Leitura e Outros Textos Críticos, seleção de textos críticos de Lima organizada por seu primeiro biógrafo, Francisco de Assis Barbosa. A professora da UFRJ Beatriz Rezende é a organizadora da nova seleção, que inclui outros textos. Ela é também a responsável por uma nova edição da Carambaia, que reúne em um único volume de 512 páginas os romances satíricos Os Bruzundangas (1922) e Numa e a Ninfa (1915).