Em 1898, o escritor britânico H.G. Wells (1866–1946) foi obrigado a parar sua intensa produção literária por conta de um forte resfriado. Decidiu percorrer um longo trajeto de bicicleta entre duas cidades inglesas e foi surpreendido por um temporal. De cama na casa de um médico amigo, o autor repousou por alguns dias, mas não acusou melhora – na verdade, também descobriu que estava com problemas renais. Seis semanas desfalecido era tempo demais para um dos nomes pioneiros – e dos mais ativos – na ficção científica, criador de histórias como A Máquina do Tempo (1895), A Ilha do Dr. Moreau (1896) e A Guerra dos Mundos (1898). Bastaram alguns poucos lápis de cor furtados do quarto das crianças da casa para Wells mergulhar na história As Aventuras de Tommy, livro escrito e ilustrado pelo britânico que ganhou seu primeiro lançamento no Brasil pela editora gaúcha Piu, com tradução do jornalista Eduardo Bueno, o Peninha.
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Wells endereçou a obra para Marjory, filha do doutor Henry Hick, seu médico – não havia expectativa de publicação. O volume só chegou às bancas em 1929, quando a jovem pediu autorização para lançar o livro e, com os recursos, pagar o final da faculdade de medicina. Única incursão de Wells pelo universo infantil, a obra mantém a marca imaginativa do autor com vasta produção para adultos (leia mais abaixo), opina Peninha:
– Era um presente para uma criança, assim como Alice no País das Maravilhas foi. Justamente por se sentir tão livre, tão franco e tão descompromissado, acredito que ele tenha acabado por revelar muito dos princípios que nortearam sua obra: um surdo conflito de classes, a decência e a ética em contraposição à arrogância e à prepotência e, é claro, o fator surpresa, o inesperado.
As Aventuras de Tommy parte do encontro de um homem rico, orgulhoso e desastrado com um menino que se torna seu salvador. O milionário iria morrer afogado, mas o garoto consegue ajudá-lo, resgatando-o com seu barco. E até na forma de agradecer o homem extravasa soberba: quer presentear o garoto com algo único e surpreendente – apesar da recusa insistente do guri. A recompensa escolhida é um elefante. Depois, os leitores são forçados a conviver com uma lacuna em parte triste e, por outro lado, convidativa. Ninguém sabe como se deu a parceria de Tommy e Augustus (o nome do exótico animal de estimação). Wells nunca continuou a história, apesar de levantar esta possibilidade no fim do livro.
– Não creio que o fato de ter virado uma história que não termina tenha sido algo voluntário. Acho que Wells deve ter achado que de fato continuaria. Mas, para quem compra o livro e o lê para uma criança, Tommy ser uma história sem fim se torna um prato cheio para que o adulto convide o pequeno leitor, ou o pequeno ouvinte, para que ele se torne coautor – avalia Peninha.
Esse é o segundo volume da Editora Piu, comandada por Paula Taitelbaum. O primeiro título lançado foi Bichológico, no ano passado, assinado pela própria Paula. Focada na literatura infantojuvenil, a editora terá mais duas novidades ainda neste mês: O Pequeno Patachu e Mais Histórias do Pequeno Patachu, do francês Tristan Derème, cuja obra teria inspirado Saint-Exupéry a escrever O Pequeno Príncipe.
H.G. WELLS PARA ADULTOS
A MÁQUINA DO TEMPO (1895)
Se hoje o DeLorean da trilogia De Volta para o Futuro ou a Tardis do seriado Doctor Who são chamadas de “máquinas do tempo”, é porque Wells tornou o termo popular com este misto de aventura e alegoria crítica à revolução industrial. Um cientista inglês viaja para o futuro e encontra a humanidade dividida em dois estratos, os pacíficos Elois, que vivem em um éden tecnológico na superfície, e os abrutalhados Morlocks, responsáveis por operar no subterrâneo as máquinas que tornam tal paraíso possível. A relação entre as espécies, contudo, se prova mais complexa do que aparenta. No cinema, ganhou diferentes adaptações, como a de 1960, com Rod Taylor (foto acima), e a de 2002, assinada por Simon Wells, bisneto de H.G.Wells.
A ILHA DO Dr. MOREAU (1896)
Edward Pendrick, um viajante inglês, é abandonado pelo comandante de um navio em uma ilha remota no meio do Pacífico Sul, para a qual levou uma carga de animais vivos. Ele é resgatado pelos misteriosos moradores do lugar, o fisiologista Doutor Moreau e seu dúbio assistente Montgomery. Abrigado na ilha enquanto espera a improvável passagem de um novo navio, Pendrick toma ciência das inomináveis experiências de vivissecção que Moreau vem realizando para transformar animais em humanos. Embora a parte “científica” hoje possa soar fantasiosa, as discussões éticas e filosóficas levantadas pelo romance ainda são muito pertinentes. Entre as versões para o cinema estão a de 1932, com Charles Laughton, a de 1977, com Burt Lancaster, e a de 1996, estrelada por Marlon Brando.
A GUERRA DOS MUNDOS (1898)
Clássico da ficção científica que influenciaria boa parte das narrativas posteriores sobre “contatos alienígenas”. Na Londres vitoriana, a chegada de marcianos a bordo de artefatos que caem do céu como meteoros prova que a humanidade não está sozinha no Universo. Crítico do colonialismo europeu de seu tempo, Wells intuía que esse tipo de contato, contudo, não seria de congraçamento e sim de conquista. Os marcianos logo estão empreendendo uma invasão em massa em veículos que se locomovem sobre três pernas e carbonizando tudo o que encontram em seu caminho. O livro inspirou vários filmes, como o clássico de 1953 dirigido por Byron Haskin e a releitura de 2005 assinada por Steven Spielberg e com Tom Cruise (foto acima) como protagonista.