Abrão Slavutzky
Psicanalista
Será que o livro O Mal-Estar na Cultura, escrito por Sigmund Freud (1856-1939), poderia ainda hoje nos clarificar sobre o que ocorre com nossa pobre humanidade? Com pouco mais de 60 páginas, é sua obra mais lida, traduzida e sinistra, segundo Elizabeth Roudinesco em seu recente livro Sigmund Freud – Na sua Época e em Nosso Tempo. Nessa biografia, consta que o título inicial seria A Felicidade e a Cultura, depois o primeiro psicanalista da História pensou em Infelicidade na Cultura. Finalmente, optou pelo título enigmático O Mal-Estar na Cultura.
Ao concluir a obra, em 1930, Freud contou em carta à sua amiga Lou Andreas-Salomé que havia escrito sobre a civilização, o sentimento de culpa e a felicidade. Como se verá, não destacou na correspondência a poderosa pulsão de morte. Não estava satisfeito com o ensaio, pois parecia repetir conceitos desenvolvidos em obras anteriores. Ele confessa que escreveu porque se sentia entediado nas férias e não podia passar o dia fumando, jogando cartas ou lendo. Sua pergunta ao longo do livro é para onde vai essa cultura da qual o homem se orgulha. Em 1931, acrescenta ao livro uma pergunta final: mas quem pode prever o desenlace? Desenlace entre o desenvolvimento cultural por um lado e, pelo outro, a pulsão de agressão e autoaniquilamento. Escreve que poderá haver extermínio de uns contra outros até o último homem. Talvez o velho Freud estivesse pessimista, mas a pergunta final foi incluída após a crise de 1929 e o início da ascensão do nazismo. Freud estava sombrio numa Europa sombria.
O livro O Mal-Estar na Cultura segue vigente quase 90 anos após ser escrito? Vejamos, brevemente, seus temas básicos. No primeiro capítulo, Freud dialoga com seu amigo escritor Romain Roland sobre o sentimento oceânico e aproveita para criticar mais uma vez a religião e suas ilusões. Depois, constrói uma metáfora de como é o inconsciente a partir da geografia e da história da cidade de Roma. É um capítulo que obriga o leitor a ter certa paciência com os conceitos de Psicanálise que ele utiliza. Retoma seu livro O Futuro de uma Ilusão, sobre a religião. Interpreta as necessidades religiosas como derivando do desamparo infantil. Quando somos crianças, somos amparados pelos pais, que, idealizados, nos parecem poderosos. Depois, crescemos e precisamos de amparos para substituí-los, e a religião brinda o Todo-poderoso que ampara. O desamparo é um dos motivos principais de O Mal-Estar na Cultura.
As raízes de nossos sofrimentos são três: 1) o corpo, vulnerável, destinado à dissolução no fim; 2) as fúrias do mundo exterior que podem se abater sobre nós; e 3) os vínculos com outros seres humanos. Precisamos, para sobreviver, da vida em sociedade, que nos gera mal-estar, pois somos ambivalentes: amor e ódio convivem em cada um de nós. Freud faz referência às drogas que aliviam o sofrimento, gerando intoxicação. Destaca os caminhos criativos para evitar a dor, como a sublimação das pulsões através da arte. Freud chega a dar conselhos de autoajuda: assim como o comerciante precavido evita investir todo seu capital num só lugar, poderia ser dito que a sabedoria da vida aconselha a não esperar toda a satisfação de uma aspiração única, pois o êxito nunca é seguro. Ou seja: idealizar alguém ou algo gera decepções. Indaga sobre a felicidade que seria evitar os sofrimentos, mas a sociedade é insuficiente. São insuficientes as normas que regulam os vínculos recíprocos entre os homens na família e no Estado. Então, define o que é cultura: "É a soma de operações e normas que distanciam nossa vida de nossos antepassados animais e que servem a dois fins: a proteção do ser humano frente à natureza e a regulação dos vínculos recíprocos entre os homens". A substituição do poder do indivíduo pelo da comunidade é o passo cultural decisivo.
O livro questiona a famosa frase que manda o homem amar o próximo como a si mesmo. Então, assegura que "o ser humano não é um ser manso, amável", mas, sim, é dotado de um poder pulsional agressivo. O próximo é uma tentação: para explorar sua força de trabalho, usá-lo sexualmente, roubar-lhe seu patrimônio, humilhá-lo, martirizá-lo e assassiná-lo. Frases assustadoras, mas que ocorreram ao longo de toda a história humana, como recorda o autor ao descrever as invasões bárbaras, Gengis Khan, as Cruzadas e os horrores da I Guerra Mundial. Depois da morte de Freud, ainda se desenrolaria a II Guerra, com os campos de extermínio nos quais suas irmãs acabaram mortas. E nesses tempos não se conheciam ainda os milhões de mortos durante o trágico stalinismo. Depois da morte de Freud, como se sabe, viriam as guerras imperialistas e as ditaduras militares com torturas e assassinatos. E nessa linha acrescentaria as violências de gênero, as violências cotidianas que crescem a cada ano.
No ponto V do livro, Freud se refere aos comunistas que acreditavam, na época, terem achado o caminho para a redenção do mal. Pensavam um ser humano bom, e a propriedade privada como a origem de todo mal. Se a propriedade privada fosse cancelada, pode ser bom, escreve Freud, mas a agressão não foi criada por ela. Esclarece que as crianças são agressivas e os homens não perdem seus desejos de poder e de hostilização. Poucos anos depois, Freud volta ao tema em Uma Concepção do Universo nas Novas Conferências de Psicoanálise, e faz a mesma crítica ao comunismo.
Na primeira leitura que fiz do ensaio, discordei da opinião política de Freud, mas algo do que ele escreveu é verdadeiro. Acrescentaria a vaidade e a excitação de usar e abusar do poder. Somos humanos, demasiadamente humanos. Entretanto, creio que Freud negou demais o mal do nazismo, sua indiferença à política fez mal a ele e à história da psicanálise. Felizmente, uma porcentagem de psicanalistas, há muito tempo, percebeu que, ao sermos humanos, devemos defender os valores da democracia, da liberdade e da justiça social. Manter, enfim, a rebeldia de pensamento que norteou tanto Freud como muitos de seus seguidores.
O Mal-Estar na Cultura tem sua origem na I Guerra Mundial (1914-1918), que mudou a história do mundo e a forma de pensar de Freud. Já em 1920, ele escreve Mais Além do Princípio do Prazer, que introduz a poderosa pulsão de morte. Destaca a compulsão, a repetição e o caráter conservador da vida pulsional. Expõe que as manifestações das pulsões de vida, que chama de Eros, são mais evidentes e chamativas, mas as pulsões de morte – Tánatos – são mudas dentro do ser vivo. Assegura que a inclinação agressiva é uma disposição pulsional autônoma, originária, do ser humano. E conclui que a cultura encontra aí seu obstáculo mais poderoso. Parênteses para girar a câmera em direção ao último capítulo do melhor livro de Edgar Morin, Meus Demônios (Bertrand Brasil, 1997). Ao final do livro, em quatro páginas, o francês expõe como a crueldade é constitutiva do universo, como o ser humano tem um movimento ruidoso de monstros que libera em ocasiões favoráveis. O ódio arrebenta por nada, e, como o egoísmo, o desprezo, a indiferença, a desatenção, sucede em toda parte. Morin conclui que a pior crueldade e o melhor da bondade no mundo estão no homem. Seria possível citar outros como Walter Benjamin ou Jacques Derrida refletindo sobre a tendência destrutiva da condição humana.
No ponto VII de O Mal-Estar na Cultura, Freud se refere à perda do amor do outro de quem se depende, e como se gera daí o sentimento de desamparo. Nada mais assustador do que perder o amor do outro e enfrentar a solidão total. O sofrimento devido ao sentimento de culpa que volta como questão no final do livro. No inconsciente, não há sentimentos, por isso Freud substitui essa expressão por necessidade de castigo. Sim, somos masoquistas, quantas vezes buscamos o sofrimento como forma de nos punir. Aí se unem tanto o erotismo da pulsão de vida como a pulsão de morte junto ao poderoso Supereu que nos maltrata por pecar ou desobedecer. Em outras palavras: a arte de viver é uma arte difícil, alguns conseguem viver bem, apesar das tensões sociais e políticas. Aliás, no segundo capítulo do livro há uma referência explícita à arte de viver na qual o amor, amar, ser amado seria o ponto central dessa arte. Junto ao amor, o gozo da beleza que gera um efeito embriagador. Talvez Freud tenha escrito O Mal-Estar na Cultura para que sejamos menos ingênuos e também nos contar um pouco de como viver melhor. Recordo que pensou na felicidade como título inicial do seu livro. E escreveu para aliviar as suas angústias e as nossas ao buscar entender, mais uma vez, a difícil condição humana.
Já escrevi que a última pergunta do livro feita por Freud foi: quem pode prever o desenlace? Boa pergunta para começar uma longa conversa entre nós todos. A verdade é que não vivemos em tempos de luzes, mas sim em tempos sombrios. Vivemos tempos de crise europeia, a fome na África, guerras no Oriente Médio, autoritarismo nos Estados Unidos.
Freud escreveu a seu amigo escritor Arnold Zweig que estamos caminhando para tempos ruins. Assegura que devia ignorar com sua apatia da velhice, "mas não posso deixar de ter pena de meus sete netos". Freud sabia que sua vida estava no fim, não idealizava mais o ser humano a quem dedicou sua vida. Mapeou como ninguém a alma, que em grego é psique. Daí a palavra Psicanálise, onde análise é a decomposição das formações do inconsciente, que expressam os desejos inconscientes.
No Mal-Estar na Cultura se expressa o masoquismo que perpassa a psicopatologia. Já em 1924, no seu Problema Econômico do Masoquismo, destaca que a tendência ao sofrimento constitui o ser humano. O masoquismo é também uma dependência de outro que goza nossa dor, e assim nos afastamos da solidão do desamparo.
Tudo que podemos fazer diante da crueldade é suportar o desamparo junto aos demais. Resistir através das palavras, da dança, das artes, das amizades, das piadas. Precisamos, diante do mal-estar na cultura, fortalecer nossos laços amorosos para resistirmos juntos. Bons desafios temos pela frente. Vamos à luta, a esperança existe se for construída. Lembremos, finalmente, a rebeldia de Waly Salomão: criar é não se adaptar à vida como ela é.