Os livros de contos não são a preferência entre os leitores, mas uma boa oportunidade para virar esse jogo acaba de chegar às livrarias. Manual da Faxineira, da americana Lucia Berlin, é uma coletânea de qualidade literária inegável, com características para engajar um público amplo – humor, personagens cativantes e um mistério a desvendar: afinal, quem é Lucia Berlin? (E, se ela é tão boa, como nunca ouvi falar dela antes?)
Lucia morreu em 2004, aos 68 anos, deixando 76 contos publicados em revistas e reunidos em três livros. Mãe de quatro filhos, divorciou-se três vezes antes dos 32 anos e trabalhou duro para sustentar as crianças, sendo professora, secretária, enfermeira e faxineira. Alcoólatra e autora de uma prosa densa, porém acessível, já foi comparada a Charles Bukowski – talvez se tornasse um fenômeno literário em vida, se as mulheres da sua geração tivessem oportunidade de exibir seu talento literário nos jornais como os homens.
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Foi só em 2015 que Lucia se tornou um best-seller, depois que 32 histórias suas foram reunidas em Manual da Faxineira e lançadas em inglês. Para muitos, uma grande escritora nascera da noite para o dia, comparada ao mestre Raymond Carver e apontando influências como Tchekhov, por conta dos personagens pateticamente humanos, e Proust, pelo modo como transforma sua vida em ficção. Em um ano, o livro foi traduzido para sete idiomas, e mais 13 edições estrangeiras estão em elaboração.
O caráter autoficcional é mais uma faceta capaz de atrair quem não costuma ler contos, dando às histórias semelhança a capítulos de um romance. Apesar dos nomes das narradoras mudarem, muitos personagens voltam, como a mãe que não consegue expressar afeto; o pai minerador que fez a família crescer em diferentes lugares; o marido que abandonou o lar. São aspectos da vida da autora, explorados de diferentes pontos de vista.
Mais do que personagens e situações, duas características se repetem nas protagonistas, reforçando o sentido de unidade: solidão e generosidade. Lucia escolhe como foco seres desajustados, como a menina protestante que não consegue se enturmar no colégio católico em Estrelas e Santos ou a faxineira que não é aceita pelas colegas e tem dificuldade de conseguir trabalho por ser “instruída”, no conto-título. E até circulando só entre desajustados as personagens principais se sentem isoladas. É o caso da alcoólatra que é internada em uma clínica de reabilitação, mas ouve dos outros pacientes que “não é bebona nem aqui nem na China”, no conto A Primeira Desintoxicação.
Mas nada disso é narrado com mágoa – ao contrário. No conto Dr. A. H. Moynihan, uma jovem é submetida à tarefa de arrancar os dentes do avô, dentista obcecado por criar dentaduras perfeitas. Depois da sessão, narrada com um misto de humor negro e realismo bizarro, a menina se compadece da dor que o avô sente e pergunta à mãe, que não tem boa relação com ele, se ela ainda o odeia. A resposta é: “Ah, odeio. Odeio sim”. Lucia nunca escorrega no sentimentalismo.
Manual da Faxineira consegue tratar de histórias melancólicas, sem ser melancólico. É um livro de alguém que aprendeu a rir de si mesmo e, por meio da literatura, compartilha o seu desajuste.