Leia entrevista com a professora de Literatura da UFRGS Regina Zilberman, organizadora do livro A Nossa Frágil Condição Humana (Companhia das Letras), que reúne 68 crônicas sobre judaísmo publicadas por Moacyr Scliar em Zero Hora de 1977 a 2010. O lançamento em Porto Alegre será nesta quinta-feira (23/3), data em que o escritor completaria 80 anos, na Livraria Cultura do Bourbon Shopping Country.
As crônicas presentes no livro revelam uma unidade de estilo impressionante quando se nota que foram escritas em um amplo intervalo de tempo, de 1977 a 2010.
É impressionante: uma produção madura desde os anos 1970. E note a facilidade com que ele expõe assuntos muito espinhosos, complicados para a gente e para quem não é judeu também.
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Existem muitas formas de judaísmo: o judaísmo ortodoxo, o liberal, o laico ou até mesmo ateu, para citar alguns exemplos. Qual é o judaísmo de Scliar?
Acho que ele é o judeu étnico, não o judeu religioso. Talvez seja também o teu caso, o meu caso. A gente não renega a etnia, a origem, a história e tudo, mas pode ser ateu. Freud é isso, um judeu ateu. Ele sabe sua inserção dentro de uma certa trajetória. Mais do que uma etnia, é uma cultura. Se isso pudesse ser uma característica que o Estado de Israel assumisse, acho que seria um bom caminho para o fim dos conflitos. O Moacyr era dessa vertente: um judeu inserido em uma cultura, conhecedor de uma tradição, atento a uma realidade contemporânea, mas não um praticante religioso.
Nas crônicas do livro, ele não aborda muito a religião.
Mesmo quando trata de um rabino (Henry Sobel), na crônica que dá título ao livro, não lhe importa tanto o fato de ser rabino, mas de ser militante de uma política democrática brasileira, o cara que se envolveu no caso (Vladimir) Herzog (cuja morte foi divulgada, durante a ditadura militar, como suicídio, embora ele não tenha sido enterrado como suicida, em decisão do rabino Sobel que questionava a versão oficial). Fora das crônicas, em Os Vendilhões do Templo (romance de 2006), ele debate o confronto entre o judaísmo e o cristianismo em uma perspectiva mítica, mas não religiosa.
É possível traçar paralelos entre os interesses de Scliar presentes nessas crônicas judaicas e os temas de sua ficção?
Sim. Há uma visão bem coerente, tanto em relação à questão cultural – inseridas aí a tradição bíblica, mítica etc. – como em relação ao papel do judeu na sociedade contemporânea brasileira e internacional. A questão política de Israel é mais forte nas crônicas, ficando bem mais restrita nos romances. Está em A Guerra no Bom Fim (narrativa longa de 1972). É um assunto que começa no romance, mas depois ele vai evitar na ficção, porque talvez a realidade fosse mais violenta, e a ficção não fosse dar conta. Mas há essa coerência.
Boa parte das crônicas é sobre a política de Israel e do Oriente Médio. Isso corresponde à proporção do que ele escrevia sobre o assunto ou foi uma opção sua ao organizar o livro?
É o que tinha mais. Quando organizei as primeiras crônicas para o livro A Poesia das Coisas Simples, achava que o livro teria um capítulo sobre temas judaicos, outro sobre Porto Alegre, outro sobre leitores, escritores e tal. Mas ficaram tantas crônicas que tive que cortar as partes inicias, principalmente essa (das crônicas judaicas), que dava mais de cem textos. Guardei, pensando que um dia seria um livro independente. E de fato a oportunidade apareceu. Dessas mais de cem, ficaram 68. Foram cortadas as que perderam a atualidade e as que eram muito curtinhas. Mas a proporção (das que tratam da política israelense) se manteria, pois é o grande núcleo. Depois, vem as questões históricas, culturais. Isso se deveu um pouco ao próprio posicionamento da ZH, que confiou muito no Moacyr como intérprete dos problemas do Oriente Médio. Essas crônicas, em geral, vinham nas seções de opinião, mais políticas, e não nos cadernos de cultura. E acho que ele deu conta do recado.
Lendo as crônicas agora em um só volume, com o distanciamento do tempo, podem ser percebidas novas facetas do Scliar cronista?
Sim. Não é que o Moacyr não desse valor às crônicas, mas ele tinha uma visão hierárquica, entre aspas, dos gêneros literários (risos). O romance é a grande produção, exige muito do escritor, é o ponto de chegada. Depois, vem o conto, que ele acabou abandonando, e a crônica, à qual ele não dava suficiente importância, embora fizesse muito mais crônica do que qualquer outra pessoa, talvez porque tivesse facilidade. Mas é um gênero que ele praticou com muita qualidade e que é importante para a gente entender inclusive esse estilo dele. Quando se fala do Moacyr, se pensa que ele escreve de um jeito muito fácil, muito simples, mesmo em relação ao romance. Primeiramente, isso é fruto da grande qualidade da linguagem dele. Em segundo, é fruto desse exercício de simplificar para o leitor sem facilitar. Então, a crônica é o laboratório onde ele pratica isso e depois leva para o romance. Na crônica, ele já mostra o domínio que tem da língua portuguesa. É o lugar para a gente conhecer o estilo e a qualidade do tratamento que ele dá à língua portuguesa.
Você já havia organizado outras duas coletâneas temáticas de crônicas. Foi um planejamento ou as oportunidades foram surgindo com o tempo?
Depois que o Moacyr faleceu, a Companhia das Letras tomou a iniciativa de digitalizar a produção dele na RBS em dois grandes blocos – crônicas em geral e crônicas médicas – para fazer dois livros. Mas os textos gerais tinham tal ramificação que eu tentei, na primeira rodada, dividir em quatro ou cinco blocos. O primeiro era o olhar judaico, o segundo era das memórias de Porto Alegre, aí vinha um bloco sobre leitores, escritores e mais duas temáticas. Pensei que o olhar judaico daria um livro independente. Tirei o que chamei de memórias de Porto Alegre, pois tinha outros livros de crônicas sobre o assunto e isso poderia aguardar ou até nem sair. Se juntasse os textos em que ele fala de outros escritores, daria um livro de crítica literária, mas aí já é espremer demais. Acho que o mercado editorial brasileiro não comporta. A não ser que fosse uma edição da obra completa.
A Nossa Frágil Condição Humana pode interessar a quem não tem uma vivência judaica?
Seria fundamental. Ele não é doutrinário, não quer ensinar nada a ninguém. Mas vai contando a história de uma nação, que tem origens lá na Antiguidade, que se manteve aos trancos e barrancos até a atualidade. O leitor vai conhecer uma cultura da qual todo mundo faz parte: temas míticos, bíblicos e históricos fazem parte da tradição ocidental. E vai entender uma posição sobre a política contemporânea, no caso do Oriente Médio, que é talvez um dos casos mais complicados, senão o mais complicado, dos últimos 50 anos. Tem uma guerra ocorrendo lá, com ramificações, um conflito que é também religioso. São concepções diferentes entre os muçulmanos, entre muçulmanos e judeus e ente os judeus. Não dá para a gente olhar como se fosse problema deles, dos judeus e palestinos. É um problema de todos. Se aquilo explodir, mamma mia! (risos). Eu recomendo (a leitura das crônicas judaicas de Scliar) para todo mundo. Não é porque eu organizei o livro ou porque sou admiradora da obra do Moacyr. É um problema global e brasileiro. Somos um povo multicultural. Temos que entender os outros, e os outros têm que nos entender.