À mesa de um bar da Cidade Baixa, em 2011, João Gilberto Noll sentava-se rodeado de poetas e escritores uma geração mais novos do que ele, que discutiam eventos literários, séries de TV assistidas, livros lidos ou por escrever. O escritor não falava, apenas mirava em volta com um ar permanentemente sério, e quem olhasse de longe talvez o achasse melancólico. Mas a intervalos ele estendia as mãos sobre a mesa e falava, mais para si do que para o grande grupo:
– Cara, que maravilha é estar vivo.
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A cena ocorrida durante a FestiPoa Literária em que João Gilberto Noll era o autor homenageado é simbólica por representar, sumariamente, algumas das contradições características da vida e da obra do autor porto-alegrense, cuja morte, aos 70 anos, foi confirmada pela família na manhã desta quarta-feira – vítima de um mal súbito. Noll foi parte de uma geração (na qual pode ser incluído também seu amigo e colega de faculdade Caio Fernando Abreu) que trouxe para a literatura dos anos 1970 experiências individualíssimas como drogas, obsessões sexuais, a vadiagem e a errância como formas de rejeição da vida burguesa ordenada. Temas que contrariavam muito do engajamento político dominante no período.
Misto de andarilho e monge, Noll não se sentia parte de grupos ou correntes, e viveu uma vida literária de solidão autêntica, com uma abordagem aventureira do ofício da escrita – começava seus livros sem enredo, sem um plano definido, sem sequer um tema, tateando em busca de uma trajetória e de uma atmosfera para seus personagens. Mas, ainda assim, fez-se admirar por uma geração mais jovem devido a seu compromisso radical com a literatura como vocação e à força característica de sua voz.
Se a expressão não carregasse uma certa carga de preconceito num país tão inclinado ao anti-intelectualismo como o Brasil, Noll poderia ser chamado de "escritor de escritores". Sua obra é consistentemente premiada, e muitos críticos e escritores como Silviano Santiago ou José Castello teceram elogios a sua prosa inquietante. Foi adaptado para teatro e cinema, mas seus livros não são especialmente conhecidos pelo chamado "grande público", e talvez por não se prender ao registro realista, preferindo o encadeamento de situações oníricas ou absurdas e a criação de um clima particular mais do que uma história, sua obra muitas vezes encontrou maior ressonância fora do Rio Grande do Sul.
– Eu fugia como o diabo da cruz da hegemonia realista do romance brasileiro. Na minha geração, o romance era o do século 19, e depois o dos anos 1930, que é regionalista, de denúncia social, coisas que não sou. E eu fugia disso – disse, em uma entrevista a Zero Hora, em 2013.
Noll foi o criador de uma longa galeria de personagens insatisfeitos (ou o mesmo personagem em diferentes situações fictícias, como costumava sintetizar seu trabalho). Não importando se estão em condições de absoluta mendicância, como no barroco A Fúria do Corpo (1981), ou passando temporadas financiadas no Exterior, como Berkeley em Bellagio (2002), os protagonistas de Noll são seres que se consideram miseráveis, os move uma fome que, se por vezes é física, na maioria das vezes é espiritual – palavra significativa, porque Noll tecia seus livros em uma primeira pessoa que vasculha um catálogo de angústias e anomias. E, nas vezes em que foi convidado a ler em voz alta trechos de seu trabalho, fazia questão de interpretar em um tom monocórdico assemelhado a uma litania religiosa. Porque era um autor silencioso e observador para quem estar vivo era maravilhoso, uma maravilha sempre ensombrecida pela proximidade da morte. A morte como a grande antagonista de seus livros. Como ele disse na mesma entrevista, em 2013:
– Escrevo porque vou morrer. Se não houvesse a morte, eu não escreveria, ficaria coçando o saco na praia, de preferência no Nordeste.