Por pouco as cartas que compõem Numa hora assim escura não viraram cinzas. Depois de uma briga entre Hilda Hilst (1930 – 2004) e Caio Fernando Abreu (1948 – 1996), em 1992, a poeta paulista recolheu um conjunto de correspondências que recebera do escritor gaúcho desde o início dos anos 1970 e resolveu atear fogo à papelada. Assistindo à cena, o poeta baiano Antonio Nahud Júnior tentou convencer Hilda a não queimar os papéis. "Quer para você? São suas. Leve-as daqui e bem rápido", teria dito a autora.
Por mais de 20 anos sob a tutela de Nahud, as cartas se tornaram públicas com a edição de Numa hora assim escura. O volume, que acaba de chegar às livrarias, é organizado pela jornalista Paula Dip, que já retratou sua própria amizade e correspondência com o autor no livro Para sempre teu, Caio F. (2009) – foi depois do lançamento desta primeira publicação que Nahud procurou Paula para vender as relíquias guardadas. A reunião de cartas joga luz em uma fase menos conhecida da vida de Caio: o fim da adolescência. Aos 19 anos, tímido e inseguro, o autor buscou abrigo na Casa do Sul, residência para a qual Hilda Hilst se mudou nos anos 1960, no interior de Campinas, e que abrigava por longas temporadas intelectuais e jovens idealistas. Morou lá por algum tempo, chegando a ser considerado "assistente" de Hilda.
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Um dos méritos da edição é contextualizar a amizade entre os escritores ao longo de suas carreiras literárias, laço afetivo que seguiu até a morte precoce de Caio – mesmo depois da briga relatada acima, os dois continuaram próximos. Esta contextualização ocupa o primeiro terço do livro, e é narrada por Paula sem esconder sua admiração pelo autores. “Tanto Caio quanto Hilda viviam como os grandes artistas que se atiram à sua obra sem reservas. (...) Tinham a sensibilidade à flor da pele e um temperamento exaltado, que liberavam sem medo”, escreve Paula.
Numa hora assim escura conta com esparsas respostas de Hilda a Caio, talvez porque elas não tenham sido guardadas, talvez porque ela nem sempre respondia às missivas. "Acho um pouco chato que você só me escreva quando solicitada, isto é, quando eu tomo a iniciativa de te escrever. Isso me magoa", queixa-se o autor à amiga, em maio de 1972.
Já Caio envia dezenas de textos à amiga entre 1971 e 1990. A correspondência agrupada no livro dá conta de descrever um jovem adulto inquieto, em busca de um lugar ideal para viver e de sua voz literária. O autor aparece como uma personalidade intensa, sem meios-termos. Ao sair da Casa do Sol, escreve do Rio para Hilda, em 11 maio de 1971: "Sinto que fui tocado, escolhido, que sou um profeta (...) Anota isso: eu vou explodir dentro de pouco tempo, estou sentindo que vai acontecer uma coisa muito ampla e maravilhosa".
Mesmo com os altos e baixos, fica aparente que a escrita é a busca central da vida de Caio. Não há cartas em que o fazer literário ou a leitura não sejam temas fundamentais. Acima de tudo, fica clara a determinação que transformou o autor de Morangos mofados (1982) em um dos maiores nomes da literatura brasileira de sua geração.
Preste atenção: Caio Fernando Abreu será lembrado duas vezes nesta semana em Porto Alegre. Na sexta-feira, a montagem teatral Caio do céu estreia no Theatro São Pedro, abrindo o festival Porto Verão Alegre. A direção é de Luiz Arthur Nunes. A atriz Deborah Finocchiaro e o músico Fernando Sessé são os protagonistas. Confira informações sobre ingressos em portoveraoalegre.com.br. Já no sábado, na livraria Baleia do centro cultural Aldeia (Rua Santana, 252), o pesquisador Luís Francisco Wasilewski dará um curso intitulado Morangos Mofados: Leitura Obrigatória para o Vestibular e para Vida. Outras informações em bit.ly/InscriMorangos.
NUMA HORA ASSIM ESCURA
De Paula Dip
Editora José Olympio, 160 páginas, R$ 59,90.